Vai para nove anos que trabalho numa loja instalada numa
grande superfície. O percurso entre casa e o centro comercial repete-se aproximadamente
242 dias por ano, descontando férias, folgas e duas interrupções fixas: dias de
natal e ano novo. São pelo menos 8 horas de trabalho diárias, o que me leva a
concluir ser aquele edifício um dos “lugares” onde passo mais tempo por ano.
Isso mesmo teria de concluir se fosse um lugar o local de trabalho para onde me
dirijo monótona e repetidamente. Faço-o contratualmente, por dever, obrigação e
necessidade. Uma necessidade relativa, é certo. Ainda assim, necessidade.
Reconheço-lhe o privilégio da observação. O centro
comercial é um óptimo observatório social, por ali transitam diariamente centenas de
pessoas com comportamentos e atitudes similares mas histórias
pessoais diversas. Reduzidas à condição de clientes, essas pessoas procuram
responder às expectativas sobre elas colocadas adoptando comportamentos estereotipados.
Na relação que estabelecem com os funcionários, fazem-se valer dos seus
direitos de consumidor. Estão numa posição de poder. O poder que exercem, a
forma como o exercem, é revelador da moral que têm (ou não têm).
Uns arrogantes, outros modestos, uns discretos, outros
exuberantes, mas quase todos obedientes a um código geral cujo cumprimento é
garantido pela observação dos seguranças colocados em locais estratégicos e da sinalética disseminada pelo edifício.
Há indivíduos que aparecem ocasionalmente, reconhecemos-lhes o rosto. Outros
são presença assídua, diária. Mas o que mais os aproxima é o anonimato, o mesmo
anonimato instalado entre as pessoas que ali trabalham e diariamente se cruzam
sem sequer saberem o nome umas das outras.
Os centros comerciais fazem parte desse conjunto
de instalações a que Marc Augé chamou de «não-lugares», espaços definidores de
uma sobremodernidade que se caracteriza pela «superabundância de acontecimentos,
a superabundância espacial e a individualização das referências» (p. 40). O
lugar enquanto fronteira postulada como que foi suprimido na sobremodernidade pelo
«não-lugar», local de trânsito e transitório, ideal da efemeridade
contemporânea sem qualquer singularidade, espaço neutro ao serviço dos
indivíduos, organizado em função dos indivíduos e dos seus vazios.
O lugar antropológico enquanto investido de sentido
histórico, identitário e relacional como que se extinguiu nestes «não-lugares»
onde não se vive a história, onde tudo é transitório, onde a identidade se abrevia
nos dados fornecidos para adesão a um cartão de cliente, onde as relações entre
os indivíduos se exercem com o compromisso da insciência (por assim dizer). Daí que ao cumprimentar
um cliente o funcionário não esteja a cumprimentar uma pessoa, pois fora
daquele espaço circunstancial essa pessoa não irá reconhecê-lo nem será reconhecida senão enquanto pólos de uma relação cliente-funcionário.
Tudo isto procura disfarçar-se com guiões pautados pela
simpatia de um acolhimento personalizado, o qual, em si mesmo, ludibria o mais
básico procedimento das relações interpessoais: perguntar a alguém como tem
passado não pressupõe um real interesse acerca do bem-estar do interrogado. O dia-a-dia
é cada vez mais este exercício fútil de perguntar a alguém se está tudo bem sem
sequer diminuir a marcha para ouvir uma reposta, presumindo-se, desde logo, que
a resposta seja “tudo bem”. Mesmo que esteja tudo mal.
Marc Augé afirma que «O lugar e o não-lugar são antes
polaridades fugidias: o primeiro nunca é completamente apagado e o segundo
nunca se consuma totalmente – palimpsestos nos quais se reinscreve sem cessar o
jogo misto da identidade e da relação» (p. 70). Mas e se passarmos a maior
parte da nossa vida num não-lugar? Será que ele se torna um lugar para nós? Tais
dúvidas, em si mesmas, estão respondidas, pois a sobremodernidade é
precisamente esta época em que a maior parte do nosso tempo se passa em
não-lugares, sendo o efeito mais visível dessa situação a experiência de «uma forma
muito particular e muito moderna de solidão» (p. 80).
O sucesso das redes sociais não se compreende sem a
percepção desta solidão intrínseca ao cidadão da sobremodernidade, o habitante
dos não-lugares esvaziados de individualidade e de identidade. Saber-viver é
hoje um processo de aprendizagem do não-lugar, na medida em que este define a
nossa identidade pelas regras que impõe à aceitabilidade de um perfil de
utilizador, de cliente, de consumidor. «Só, mas semelhante aos outros, o
utilizador do não-lugar está com este (ou com as potências que o governam) numa
relação contratual» (p. 87). Ora, serão pessoas estas entidades que habitam os
não-lugares? Ou serão já uma outra coisa? Serão não-pessoas? Expropriadas de
singularidade, que lhes resta senão repetirem-se na solidão generalizante de
uma farda interior?
Marc Augé, Não-Lugares - Introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade, trad. Miguel Serras Pereira, Letra Livre, 2012.
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