O primeiro livro de Elena Ferrante apareceu por cá no ano
de 2005, numa tradução de Maria do Carmo Abreu que a Dom Quixote publicou sem
que recebesse grande interesse de crítica e público. Mais tarde integrado nas
Crónicas do Mal de Amor (Relógio D’Água, 2014), acabou por se revelar uma boa
porta de entrada para o universo da misteriosa autora italiana. Regresso a ele
impelido por um post no Ouriquense intitulado Violência doméstica: dar a outra
face, onde encontro uma afirmação polémica como todas as que nos levam a
pensar: «A mulher pode dar uma chapada. Ao homem resta oferecer a outra face ou
abortar a discussão e fugir».
Quem leia o post entenderá não haver no texto qualquer legitimação do agressor, mas pode resvalar para certos equívocos. Como qualquer assunto complexo, a violência
doméstica presta-se a diversos. O mais recorrente é o de julgar a
gravidade da violência exercida segundo o género do agressor. Outro, igualmente
frequente, é o de partir de um princípio diferenciador das formas de violência
praticadas. A psicológica é sempre muito mais difícil de provar do que a
física, que deixa marcas detectáveis a olho nu.
Um dos temas abordados em Um
Estranho Amor é precisamente a violência doméstica. Quem tenha lido a obra sabe
que a história é narrada pela filha de uma mulher que supostamente se suicidou,
constituindo toda a narrativa um regresso às origens motivado pelo funeral dessa
mulher. Supostamente, porque Delia, a filha de Amalia e narradora participativa,
nunca chega a ser conclusiva sobre os factos. Num processo que se revelará
característico em Ferrante, Delia tenta reviver a vida da sua mãe,
obrigando-se a uma confusão de identidades exposta em comentários tais como
«Fingia não ser eu. Não queria ser «eu», se não era o eu de Amalia» ou «não conseguia
ser «eu» no prazer dela» ou ainda «Era eu e era ela. Eu-ela encontrávamo-nos
com Caserta».
Caserta é a alcunha de um amante da mãe, pai de uma personagem
com quem Delia também terá uma relação, mais uma vez como que procurando
reproduzir a vida da progenitora. Este esforço de se colocar no papel do outro não o
faz Delia relativamente a seu pai, humilde pintor que oprimira e agredia a
mulher. Amalia é perspectivada enquanto vítima, o pai como perpetrador
da violência doméstica que tingiu a infância e a adolescência da narradora.
Amalia encontra-se secretamente com o amante, aceita os presentes de Caserta
deixando furibundo o marido, ao qual restaria apenas dar a outra face se
quisesse evitar transformar-se numa personagem execrável aos olhos da filha. No
limite, divorciava-se. Sabemos o quanto pesava o divórcio no
tempo em que a história decorre, um peso hoje relativizado pela facilidade da
desunião. Se consegue ser complacente para com certos tiques abjectos dos
Caserta, Delia não manifesta qualquer tipo de empatia para com o pai: «O meu
pai não suportava que ela risse. Considerava o riso dela um som de ocasião,
visivelmente falso. (…) Devia ter-lhe sido difícil escolher o riso, a voz, os
gestos que o marido pudesse tolerar». À imagem de uma mãe infeliz contrapõe a
figura de um pai intolerante.
O reencontro revelar-se-á desastroso: «Era apenas
um homem velho privado de qualquer humanidade pela insatisfação e pela
crueldade». Esta implacabilidade no julgamento do pai, sem qualquer tipo de
contextualização que não seja a de lhe traçar um perfil desumano, como é o de
qualquer perpetrador de violência doméstica, leva-nos a questionar qual devia
ter sido o comportamento deste homem face à traição. A determinada altura conta-se que em vez de ter assassinado o rival, o pai dava-lhe ouvidos para
depois espiar a mulher e espancá-la - como se precisasse de uma justificação
para o exercício de uma maldade que lhe era inerente.
Recordo-me, porém, do caso real
de um homem que era reiteradamente traído pela mulher, a qual o humilhava telefonando-lhe
quando estava a ter relações com o amante. O desespero levou a que tal forma de
violência descambasse num crime passional. A determinada altura, de cabeça
perdida, o marido traído apanhou em flagrante delito os infiéis e disparou
sobre ambos. Acabou preso.
O que censura Delia ao pai é pois a questão que aqui
se coloca. Censura-lhe, obviamente, a violência exercida sobre a mulher.
Censurá-lo-ia se ele tivesse matado o amante da mulher? Censurá-lo-ia se ele
tivesse matado ambos? Censurá-lo-ia se ele tivesse dado a outra face?
3 comentários:
Há dias no metro vi entrar um casal na casa dos trinta, e ela, de carrinho de bebé e gorda «como uma baleia», vira-se para ele e diz-lhe :
-Vê lá se queres levar nas trombas!
Ele riu-se.
E eu fiquei a pensar que ela pensa que é uma topmodel, e que ele qualquer dia a deixa e à criança por mulher que cheire bem.
Tenho pena do futuro da criança com pais assim.
Bom texto. Ilustra bem a razão da minha implicância (tão incompreendida) dos dias de violência contra a mulher... não percebo, deveria ser contra a violência, ponto. Há muitos tipos de violência, e, apesar de tudo, quando as vítimas são masculinas não há queixas, de todo. Não se trata de desculpar o agressor, ou de empatizar-se com a vítima, mas de repudiar a violência. Sem género.
Grato pelos comentários.
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