quinta-feira, 18 de maio de 2017

“Um Estranho Amor”

O primeiro livro de Elena Ferrante apareceu por cá no ano de 2005, numa tradução de Maria do Carmo Abreu que a Dom Quixote publicou sem que recebesse grande interesse de crítica e público. Mais tarde integrado nas Crónicas do Mal de Amor (Relógio D’Água, 2014), acabou por se revelar uma boa porta de entrada para o universo da misteriosa autora italiana. Regresso a ele impelido por um post no Ouriquense intitulado Violência doméstica: dar a outra face, onde encontro uma afirmação polémica como todas as que nos levam a pensar: «A mulher pode dar uma chapada. Ao homem resta oferecer a outra face ou abortar a discussão e fugir». 
Quem leia o post entenderá não haver no texto qualquer legitimação do agressor, mas pode resvalar para certos equívocos. Como qualquer assunto complexo, a violência doméstica presta-se a diversos. O mais recorrente é o de julgar a gravidade da violência exercida segundo o género do agressor. Outro, igualmente frequente, é o de partir de um princípio diferenciador das formas de violência praticadas. A psicológica é sempre muito mais difícil de provar do que a física, que deixa marcas detectáveis a olho nu. 
Um dos temas abordados em Um Estranho Amor é precisamente a violência doméstica. Quem tenha lido a obra sabe que a história é narrada pela filha de uma mulher que supostamente se suicidou, constituindo toda a narrativa um regresso às origens motivado pelo funeral dessa mulher. Supostamente, porque Delia, a filha de Amalia e narradora participativa, nunca chega a ser conclusiva sobre os factos. Num processo que se revelará característico em Ferrante, Delia tenta reviver a vida da sua mãe, obrigando-se a uma confusão de identidades exposta em comentários tais como «Fingia não ser eu. Não queria ser «eu», se não era o eu de Amalia» ou «não conseguia ser «eu» no prazer dela» ou ainda «Era eu e era ela. Eu-ela encontrávamo-nos com Caserta». 
Caserta é a alcunha de um amante da mãe, pai de uma personagem com quem Delia também terá uma relação, mais uma vez como que procurando reproduzir a vida da progenitora. Este esforço de se colocar no papel do outro não o faz Delia relativamente a seu pai, humilde pintor que oprimira e agredia a mulher. Amalia é perspectivada enquanto vítima, o pai como perpetrador da violência doméstica que tingiu a infância e a adolescência da narradora. 
Amalia encontra-se secretamente com o amante, aceita os presentes de Caserta deixando furibundo o marido, ao qual restaria apenas dar a outra face se quisesse evitar transformar-se numa personagem execrável aos olhos da filha. No limite, divorciava-se. Sabemos o quanto pesava o divórcio no tempo em que a história decorre, um peso hoje relativizado pela facilidade da desunião. Se consegue ser complacente para com certos tiques abjectos dos Caserta, Delia não manifesta qualquer tipo de empatia para com o pai: «O meu pai não suportava que ela risse. Considerava o riso dela um som de ocasião, visivelmente falso. (…) Devia ter-lhe sido difícil escolher o riso, a voz, os gestos que o marido pudesse tolerar». À imagem de uma mãe infeliz contrapõe a figura de um pai intolerante. 
O reencontro revelar-se-á desastroso: «Era apenas um homem velho privado de qualquer humanidade pela insatisfação e pela crueldade». Esta implacabilidade no julgamento do pai, sem qualquer tipo de contextualização que não seja a de lhe traçar um perfil desumano, como é o de qualquer perpetrador de violência doméstica, leva-nos a questionar qual devia ter sido o comportamento deste homem face à traição. A determinada altura conta-se que em vez de ter assassinado o rival, o pai dava-lhe ouvidos para depois espiar a mulher e espancá-la - como se precisasse de uma justificação para o exercício de uma maldade que lhe era inerente. 
Recordo-me, porém, do caso real de um homem que era reiteradamente traído pela mulher, a qual o humilhava telefonando-lhe quando estava a ter relações com o amante. O desespero levou a que tal forma de violência descambasse num crime passional. A determinada altura, de cabeça perdida, o marido traído apanhou em flagrante delito os infiéis e disparou sobre ambos. Acabou preso. 
O que censura Delia ao pai é pois a questão que aqui se coloca. Censura-lhe, obviamente, a violência exercida sobre a mulher. Censurá-lo-ia se ele tivesse matado o amante da mulher? Censurá-lo-ia se ele tivesse matado ambos? Censurá-lo-ia se ele tivesse dado a outra face?

3 comentários:

ZMB disse...

Há dias no metro vi entrar um casal na casa dos trinta, e ela, de carrinho de bebé e gorda «como uma baleia», vira-se para ele e diz-lhe :
-Vê lá se queres levar nas trombas!
Ele riu-se.
E eu fiquei a pensar que ela pensa que é uma topmodel, e que ele qualquer dia a deixa e à criança por mulher que cheire bem.
Tenho pena do futuro da criança com pais assim.

Olvido disse...

Bom texto. Ilustra bem a razão da minha implicância (tão incompreendida) dos dias de violência contra a mulher... não percebo, deveria ser contra a violência, ponto. Há muitos tipos de violência, e, apesar de tudo, quando as vítimas são masculinas não há queixas, de todo. Não se trata de desculpar o agressor, ou de empatizar-se com a vítima, mas de repudiar a violência. Sem género.

hmbf disse...

Grato pelos comentários.