Comecemos pelo posfácio de Anabela Mendes, por
encontrarmos aí uma curiosa sugestão de leitura: «Para ler Steiner como ele
merece, temos de tirar férias da vida». Que quererá isto dizer? O que significa
tirar férias da vida? O método aplica-se apenas a Steiner? Que terá Steiner de
especial? Por tirar férias da vida talvez devamos entender um esforço de
abstracção, um distanciamento dos paradigmas que nos asseguram, tanto quanto
possível, alguma lógica no decorrer dos dias. Mas esse distanciamento, que é em
si mesmo um teste, um questionamento, o princípio do olhar crítico, é válido
para qualquer leitura. Nada de especial encontramos em Steiner que nos obrigue
a fazer com os seus textos o que eventualmente poderíamos deixar de fazer com
os dos outros. De resto, George Steiner não pensa o mundo fora da vida. Antes
pelo contrário, nos seus textos vislumbramos sempre uma forte ligação às
vivências subjectivas. Estes são textos que nos fazem mergulhar ainda mais na
vida. Talvez seja isto mesmo o que os torna tão aliciantes, sobretudo quando
abordam temas onde as vivências podiam não ter lugar.
Nos seis ensaios coligidos por Ricardo Gil Soeiro em As
Artes do Sentido (Relógio D’Água, Fevereiro de 2017) a relação entre a vida e temas
abstractos é evidente. Logo em Narciso e Eco: Uma Nota sobre as Atuais Artes da
Leitura, a questão do sentido do sentido, num contexto hermenêutico de
interpretação do texto literário, levam-no a opor à desconstrução derridiana, e
ao seu suposto obscurantismo, uma ideia de “leitura justa”, ou seja, aquela que
mobiliza vários instrumentos «tendo em vista um fim essencial: o de elucidar, “situar”,
e o de tornar mais acessível e mais aberto às férteis incertezas da
interpretação o poema, a peça de teatro, a ficção ou o discurso filosófico» (p.
30). Portanto, contra o obscurantismo estruturalista e desconstrutivista,
propõe-se uma interpretação que não rejeite a vida, que inclua nos seus
processos todo o conhecimento disponível em relação ao texto e ao seu contexto,
nomeadamente aspectos biográficos e históricos que permitam esclarecer: «Um
poema reservado somente para a academia e para o “explicador” é tão mudo quanto
um Stradivarius fechado na estante hermética de um museu» (p. 27).
Ao lermos o último destes seis ensaios, Quatro Poetas: A
Arte de Fernando Pessoa, talvez possamos ficar com uma ideia do que é para
George Steiner Uma Leitura bem Feita. É este, precisamente, o título do segundo
ensaio aqui reunido. Polémico exercício aí se propõe. Steiner oferece-nos, em
resumo, as leituras de Hitler e Thomas Mann para a obra magma de Scopenhauer. E
questiona-se sobre qual dos dois terá lido melhor O Mundo Como Vontade e
Representação? O exercício pode ser meramente académico, mas a resposta tem implicações
que extravasam os muros da Academia: «Toda a leitura resulta de pressupostos
pessoais, de contextos culturais, de circunstâncias históricas e sociais, de
instantâneos fugidios, de acasos determinados e determinantes, cuja interacção é
de uma pluralidade, de uma complicação fenomenológica resistente a toda a
análise que não seja ela mesma uma leitura» (p. 42). Steiner não é um
subjectivista, muito menos um niilista. A esta tese acrescenta a possibilidade
de detectarmos uma boa leitura, alia o sentido ao bom senso e, ainda que
possamos julgar frágil a coligação proposta, reivindica limites à diversidade
das interpretações admissíveis.
Quem impõe tais limites? O que torna possível e
legitima tal imposição? De que falamos quando falamos de sentido? O que é uma
boa interpretação? As preocupações de Steiner são eminentemente pedagógicas.
Isso torna-se evidente no ensaio “A Tragédia”, Reconsiderada, onde aclara teses
anteriormente desenvolvidas acerca do conceito de absolutamente trágico,
interrogando-se sobre a possibilidade da tragédia num mundo sem deuses, ou
mesmo em A Longa Vida da Metáfora: Uma Abordagem da Shoah, magnífico texto onde
os limites da linguagem, aplicada a uma interpretação do holocausto, resultam
numa afirmação da poesia de Paul Celan enquanto “metáfora vivida” de uma
experiência concreta que nos rouba as palavras, que nos gera um bloqueio
interpretativo e linguístico.
Por fim, em O Crepúsculo das Humanidades? encontramos uma reflexão sobre aquilo a que podemos chamar de “crise” das ciências humanas na actualidade. O diagnóstico está feito: «O prestígio, a auctoritas cívica daqueles que professam e cultivam as humanidades tradicionais encontra-se no seu ponto mais baixo. As opções de carreira — até dos estudantes mais brilhantes — encontram-se frequentemente à beira da misère» (p. 104). Este relance crítico sobre a actualidade leva-nos a imaginar o futuro. O que será de uma sociedade quando lhe faltarem filósofos, sociólogos, antropólogos, historiadores? Não o sabemos já através de exemplos do passado? Ou até mesmo de exemplos contemporâneos? À “crise” das humanidades não corresponde apenas uma crise do humanismo, já que sempre as humanidades coexistiram com o inumano. O filósofo, o poeta, o historiador, não evitam a violência que sobre eles possa ser exercida. Não é por pensarem a violência que a extinguem, mas ao pensá-la contribuem para uma elucidação que em nos faltando fortalece essa mesma violência. Talvez a esta "crise" corresponda um novo tempo onde à metafísica se sobreporá a técnica, com consequências imprevisíveis caso não dominemos as artes da futurologia. Fortemente arreigados à vida, talvez estes ensaios de George Steiner não exijam que tiremos férias da vida para lê-los como merecem. Até porque lê-los é já merecimento que prescinde explicações acerca do como.
Por fim, em O Crepúsculo das Humanidades? encontramos uma reflexão sobre aquilo a que podemos chamar de “crise” das ciências humanas na actualidade. O diagnóstico está feito: «O prestígio, a auctoritas cívica daqueles que professam e cultivam as humanidades tradicionais encontra-se no seu ponto mais baixo. As opções de carreira — até dos estudantes mais brilhantes — encontram-se frequentemente à beira da misère» (p. 104). Este relance crítico sobre a actualidade leva-nos a imaginar o futuro. O que será de uma sociedade quando lhe faltarem filósofos, sociólogos, antropólogos, historiadores? Não o sabemos já através de exemplos do passado? Ou até mesmo de exemplos contemporâneos? À “crise” das humanidades não corresponde apenas uma crise do humanismo, já que sempre as humanidades coexistiram com o inumano. O filósofo, o poeta, o historiador, não evitam a violência que sobre eles possa ser exercida. Não é por pensarem a violência que a extinguem, mas ao pensá-la contribuem para uma elucidação que em nos faltando fortalece essa mesma violência. Talvez a esta "crise" corresponda um novo tempo onde à metafísica se sobreporá a técnica, com consequências imprevisíveis caso não dominemos as artes da futurologia. Fortemente arreigados à vida, talvez estes ensaios de George Steiner não exijam que tiremos férias da vida para lê-los como merecem. Até porque lê-los é já merecimento que prescinde explicações acerca do como.
4 comentários:
Excelente recensão sobre um livro que merece atenção. Obrigada!
Eu é que agradeço o comentário.
Completamente de acordo quanto ao posfácio de Anabela Mendes!
Aliás, uma prosa chatíssima, que nada acrescenta e só atrapalha e faz perder tempo a quem a lê, o que foi o meu caso!
A quem se dirige Anabela Mendes, afinal?
A quem não é capaz de ler George Steiner por si próprio?
Mas se assim é, então ficará capacitado com aquela prosa?!
Não brinquem às casinhas, aliás um dos temas fortes de Steiner quando trata da Academia, da Investigação, das Teses, do comentário, do comentário, do comentário!
Adenda ao meu anterior comentário:
Estava implícito (fica agora explícito) que gostei de ler a recensão ao livro que acabo de ler. George Steiner foi para mim uma descoberta e que descoberta!
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