domingo, 2 de julho de 2017

AS ARTES DO SENTIDO

Comecemos pelo posfácio de Anabela Mendes, por encontrarmos aí uma curiosa sugestão de leitura: «Para ler Steiner como ele merece, temos de tirar férias da vida». Que quererá isto dizer? O que significa tirar férias da vida? O método aplica-se apenas a Steiner? Que terá Steiner de especial? Por tirar férias da vida talvez devamos entender um esforço de abstracção, um distanciamento dos paradigmas que nos asseguram, tanto quanto possível, alguma lógica no decorrer dos dias. Mas esse distanciamento, que é em si mesmo um teste, um questionamento, o princípio do olhar crítico, é válido para qualquer leitura. Nada de especial encontramos em Steiner que nos obrigue a fazer com os seus textos o que eventualmente poderíamos deixar de fazer com os dos outros. De resto, George Steiner não pensa o mundo fora da vida. Antes pelo contrário, nos seus textos vislumbramos sempre uma forte ligação às vivências subjectivas. Estes são textos que nos fazem mergulhar ainda mais na vida. Talvez seja isto mesmo o que os torna tão aliciantes, sobretudo quando abordam temas onde as vivências podiam não ter lugar.
Nos seis ensaios coligidos por Ricardo Gil Soeiro em As Artes do Sentido (Relógio D’Água, Fevereiro de 2017) a relação entre a vida e temas abstractos é evidente. Logo em Narciso e Eco: Uma Nota sobre as Atuais Artes da Leitura, a questão do sentido do sentido, num contexto hermenêutico de interpretação do texto literário, levam-no a opor à desconstrução derridiana, e ao seu suposto obscurantismo, uma ideia de “leitura justa”, ou seja, aquela que mobiliza vários instrumentos «tendo em vista um fim essencial: o de elucidar, “situar”, e o de tornar mais acessível e mais aberto às férteis incertezas da interpretação o poema, a peça de teatro, a ficção ou o discurso filosófico» (p. 30). Portanto, contra o obscurantismo estruturalista e desconstrutivista, propõe-se uma interpretação que não rejeite a vida, que inclua nos seus processos todo o conhecimento disponível em relação ao texto e ao seu contexto, nomeadamente aspectos biográficos e históricos que permitam esclarecer: «Um poema reservado somente para a academia e para o “explicador” é tão mudo quanto um Stradivarius fechado na estante hermética de um museu» (p. 27).
Ao lermos o último destes seis ensaios, Quatro Poetas: A Arte de Fernando Pessoa, talvez possamos ficar com uma ideia do que é para George Steiner Uma Leitura bem Feita. É este, precisamente, o título do segundo ensaio aqui reunido. Polémico exercício aí se propõe. Steiner oferece-nos, em resumo, as leituras de Hitler e Thomas Mann para a obra magma de Scopenhauer. E questiona-se sobre qual dos dois terá lido melhor O Mundo Como Vontade e Representação? O exercício pode ser meramente académico, mas a resposta tem implicações que extravasam os muros da Academia: «Toda a leitura resulta de pressupostos pessoais, de contextos culturais, de circunstâncias históricas e sociais, de instantâneos fugidios, de acasos determinados e determinantes, cuja interacção é de uma pluralidade, de uma complicação fenomenológica resistente a toda a análise que não seja ela mesma uma leitura» (p. 42). Steiner não é um subjectivista, muito menos um niilista. A esta tese acrescenta a possibilidade de detectarmos uma boa leitura, alia o sentido ao bom senso e, ainda que possamos julgar frágil a coligação proposta, reivindica limites à diversidade das interpretações admissíveis.
Quem impõe tais limites? O que torna possível e legitima tal imposição? De que falamos quando falamos de sentido? O que é uma boa interpretação? As preocupações de Steiner são eminentemente pedagógicas. Isso torna-se evidente no ensaio “A Tragédia”, Reconsiderada, onde aclara teses anteriormente desenvolvidas acerca do conceito de absolutamente trágico, interrogando-se sobre a possibilidade da tragédia num mundo sem deuses, ou mesmo em A Longa Vida da Metáfora: Uma Abordagem da Shoah, magnífico texto onde os limites da linguagem, aplicada a uma interpretação do holocausto, resultam numa afirmação da poesia de Paul Celan enquanto “metáfora vivida” de uma experiência concreta que nos rouba as palavras, que nos gera um bloqueio interpretativo e linguístico.
Por fim, em O Crepúsculo das Humanidades? encontramos uma reflexão sobre aquilo a que podemos chamar de “crise” das ciências humanas na actualidade. O diagnóstico está feito: «O prestígio, a auctoritas cívica daqueles que professam e cultivam as humanidades tradicionais encontra-se no seu ponto mais baixo. As opções de carreira — até dos estudantes mais brilhantes — encontram-se frequentemente à beira da misère» (p. 104). Este relance crítico sobre a actualidade leva-nos a imaginar o futuro. O que será de uma sociedade quando lhe faltarem filósofos, sociólogos, antropólogos, historiadores? Não o sabemos já através de exemplos do passado? Ou até mesmo de exemplos contemporâneos? À “crise” das humanidades não corresponde apenas uma crise do humanismo, já que sempre as humanidades coexistiram com o inumano. O filósofo, o poeta, o historiador, não evitam a violência que sobre eles possa ser exercida. Não é por pensarem a violência que a extinguem, mas ao pensá-la contribuem para uma elucidação que em nos faltando fortalece essa mesma violência. Talvez a esta "crise" corresponda um novo tempo onde à metafísica se sobreporá a técnica, com consequências imprevisíveis caso não dominemos as artes da futurologia. Fortemente arreigados à vida, talvez estes ensaios de George Steiner não exijam que tiremos férias da vida para lê-los como merecem. Até porque lê-los é já merecimento que prescinde explicações acerca do como. 

4 comentários:

Maria João Cantinho disse...

Excelente recensão sobre um livro que merece atenção. Obrigada!

hmbf disse...

Eu é que agradeço o comentário.

José disse...

Completamente de acordo quanto ao posfácio de Anabela Mendes!
Aliás, uma prosa chatíssima, que nada acrescenta e só atrapalha e faz perder tempo a quem a lê, o que foi o meu caso!
A quem se dirige Anabela Mendes, afinal?
A quem não é capaz de ler George Steiner por si próprio?
Mas se assim é, então ficará capacitado com aquela prosa?!
Não brinquem às casinhas, aliás um dos temas fortes de Steiner quando trata da Academia, da Investigação, das Teses, do comentário, do comentário, do comentário!

José disse...

Adenda ao meu anterior comentário:
Estava implícito (fica agora explícito) que gostei de ler a recensão ao livro que acabo de ler. George Steiner foi para mim uma descoberta e que descoberta!