quinta-feira, 6 de julho de 2017

NADA NATURAL

A relevância de Gary Snyder (n. 1930) no contexto da literatura norte-americana é tema que não merece discussão. Foi ele quem traduziu os poemas de Han Shan, influenciando determinantemente o curso da literatura Beatnik. Kerouac inspirou-se nele para The Dharma Bums (há uma versão portuguesa publicada pela Relógio D’Água). Ferlinghetti ter-lhe-á chamado o Thoreau da Beat Generation, o que não fica mal apesar da comparação desnecessária. Snyder tem um percurso singular que não carece de comparações. 
Natural de São Francisco, formou-se em antropologia. O interesse pelas culturas indígenas surgiu muito cedo, nomeadamente pelos nativos norte-americanos. Esse interesse reflectir-se-á sobremaneira na sua poesia, tanto através de evocações de personagens e de lugares históricos associados à cultura ameríndia como no uso de vocábulos provenientes dos inúmeros dialectos praticados pelas tribos que outrora povoaram a América do Norte. Mais tarde, Gary Snyder aliará a este interesse o estudo profundo da cultura asiática. A filosofia Zen não foi, neste caso, mero capricho exótico. Viveu no Japão e andou pela Índia, assimilando saberes para muitos então inacessíveis a Ocidente. 
Por cá, o pouco que nos chegou da sua poesia foi incluído numa antologia pelas mãos do impagável Manuel de Seabra. Nada Natural (Douda Correria, Abril de 2017) vem ocupar um espaço vazio, numa tradução conjunta de Nuno Marques e Margarida Vale de Gato, ilustrada por desenhos de Délio Vargas, percorrendo várias obras do autor de Turtle Island (1974). O ponto de partida é No Nature: New and Selected Poems (1992), redundando esta antologia em português num breve mas generoso conjunto de cerca de trinta poemas. Lá estão as referências a Geronimo, aos Navajo, aos Anasazi, misturadas com mitologia xamânica, filosofia Zen, numa coerente salada de saberes com a Mãe Natureza a ocupar lugar central:

A GRANDE MÃE

Nem todos aqueles que passam

Frente ao trono da Grande Mãe

Podem passar só com um olhar.

A alguns vê-lhes as mãos

Para perceber que espécie de selvagens foram.


Não obstante, seria um erro cingir a poética de Gary Snyder a um mero culto contemplativo da Natureza. Não está errado chamar-lhe “the greatest of living nature poets”, mas seria redutor ficarmos por uma leitura amiga do ambiente e simpatizante do ecologismo actual. O modo como nestes poemas confluem budismo e xamanismo, resquícios de confucionismo e filosofia hindu, leva-nos a pensar que por detrás da paisagem natural convocada em inúmeros poemas há um forte enraizamento filosófico. Dessa filosofia colhemos uma crítica dos tempos modernos, o retrato de um homem desapiedado, desligado da terra, imerso num desperdício de coisas, tempo e silêncio, obsidiado pelos ruídos contemporâneos da ruína. 
O recolhimento sugestivo destes poemas não procura reduzir a prática humana à inacção. Eles convocam o gesto transformador, como nesse belíssimo poema intitulado Fire in The Hole/Vai Rebentar onde a força do trabalho no seio da Natureza coloca o homem no seu devido lugar: o de agente, não dominador, não dominado, simplesmente parte integrante de um processo de transformação consciente que entende corresponder à mudança da paisagem natural uma mudança no próprio corpo. Os últimos versos desse poema são esclarecedores: «premi o detonador para baixo. / através do pó / e pedra aos pedaços / afastei-me com calma para ver: / mãos e braços e ombros / livres» (s/p). 
Snyder não é apenas o maior poeta vivo da natureza. Ele é também um dos grandes poetas do homem, o homem que surge para lá da contemplação, da meditação, o homem que se apresenta aos olhos de cabeça limpa, «Um homem curvado, sentado num tronco / outro de pé a seu lado, ergue um cajado, / um terceiro, com um rolo de tapetes, ou um alaúde, olha em frente / um pouco ao largo duas pessoas num largo» (s/p). Esta paisagem humana que canta no interior dos poemas, uma paisagem de lenhadores, pescadores, caminheiros, vive ainda no e do solo, opõe-se a «Toda a tralha desta coisa do ser humano» (s/p) supérfluo. 
No fundo, talvez não ficasse mal julgarmos que aqui ainda estamos no cerne de um conflito fundador da modernidade, ou seja, o conflito entre o essencial e o supérfluo. Cantar a Natureza como Gary Snyder a canta é partir em busca do essencial, é abraçar o Homem num abraço à Terra, pois «Esta viva terra  ondulante / é tudo o que existe, para sempre // Somos o que ela é / e ela canta através de nós — // Podíamos viver nesta Terra / sem roupas nem instrumentos!» (s/p). Isto é, como vivíamos nesses tempos genesíacos em que o Homem e a Mulher andavam nus sobre a Terra sem sentirem vergonha por isso, pois o pecado ainda não os havia obrigado a dominarem a Natureza nem todos os animais sobre ela existentes. Bons tempos. 

2 comentários:

dama disse...

generosa a tua leitura, camarada

hmbf disse...

Ora, ora. Grato pela leitura, limito-me a dar conta de como ocupo os dias.