A relevância de Gary Snyder (n. 1930) no contexto da
literatura norte-americana é tema que não merece discussão. Foi ele quem
traduziu os poemas de Han Shan, influenciando determinantemente o curso da
literatura Beatnik. Kerouac inspirou-se nele para The Dharma Bums (há uma
versão portuguesa publicada pela Relógio D’Água). Ferlinghetti ter-lhe-á
chamado o Thoreau da Beat Generation, o que não fica mal apesar da comparação
desnecessária. Snyder tem um percurso singular que não carece de comparações.
Natural
de São Francisco, formou-se em antropologia. O interesse pelas culturas
indígenas surgiu muito cedo, nomeadamente pelos nativos norte-americanos. Esse
interesse reflectir-se-á sobremaneira na sua poesia, tanto através de evocações
de personagens e de lugares históricos associados à cultura ameríndia como no
uso de vocábulos provenientes dos inúmeros dialectos praticados pelas tribos
que outrora povoaram a América do Norte. Mais tarde, Gary Snyder aliará a este
interesse o estudo profundo da cultura asiática. A filosofia Zen
não foi, neste caso, mero capricho exótico. Viveu no Japão e andou pela Índia,
assimilando saberes para muitos então inacessíveis a Ocidente.
Por cá, o pouco
que nos chegou da sua poesia foi incluído numa antologia pelas mãos do impagável
Manuel de Seabra. Nada Natural (Douda Correria, Abril de 2017) vem ocupar um
espaço vazio, numa tradução conjunta de Nuno Marques e Margarida Vale de Gato,
ilustrada por desenhos de Délio Vargas, percorrendo várias obras do autor de
Turtle Island (1974). O ponto de partida é No Nature: New and Selected Poems
(1992), redundando esta antologia em português num breve mas generoso conjunto
de cerca de trinta poemas. Lá estão as referências a Geronimo, aos Navajo, aos
Anasazi, misturadas com mitologia xamânica, filosofia Zen, numa coerente salada
de saberes com a Mãe Natureza a ocupar lugar central:
A GRANDE MÃE
Nem todos aqueles que passam
Frente ao trono da Grande Mãe
Podem passar só com um olhar.
A alguns vê-lhes as mãos
Para perceber que espécie de selvagens foram.
Não obstante, seria um erro cingir a poética de Gary
Snyder a um mero culto contemplativo da Natureza. Não está errado chamar-lhe “the
greatest of living nature poets”, mas seria redutor ficarmos por uma leitura
amiga do ambiente e simpatizante do ecologismo actual. O modo como nestes
poemas confluem budismo e xamanismo, resquícios de confucionismo e filosofia
hindu, leva-nos a pensar que por detrás da paisagem natural convocada em
inúmeros poemas há um forte enraizamento filosófico. Dessa filosofia colhemos
uma crítica dos tempos modernos, o retrato de um homem desapiedado, desligado
da terra, imerso num desperdício de coisas, tempo e silêncio, obsidiado pelos
ruídos contemporâneos da ruína.
O recolhimento sugestivo destes poemas não
procura reduzir a prática humana à inacção. Eles convocam o gesto
transformador, como nesse belíssimo poema intitulado Fire in The Hole/Vai
Rebentar onde a força do trabalho no seio da Natureza coloca o homem no seu
devido lugar: o de agente, não dominador, não dominado, simplesmente
parte integrante de um processo de transformação consciente que entende corresponder à
mudança da paisagem natural uma mudança no próprio corpo. Os
últimos versos desse poema são esclarecedores: «premi o detonador para
baixo. / através do pó / e pedra aos pedaços / afastei-me com calma para ver: /
mãos e braços e ombros / livres» (s/p).
Snyder não é apenas o maior
poeta vivo da natureza. Ele é também um dos grandes poetas do homem, o
homem que surge para lá da contemplação, da meditação, o homem que se apresenta
aos olhos de cabeça limpa, «Um homem curvado, sentado num tronco / outro de pé
a seu lado, ergue um cajado, / um terceiro, com um rolo de tapetes, ou um
alaúde, olha em frente / um pouco ao largo duas pessoas num largo» (s/p). Esta
paisagem humana que canta no interior dos poemas, uma paisagem de lenhadores,
pescadores, caminheiros, vive ainda no e do solo, opõe-se a «Toda a tralha
desta coisa do ser humano» (s/p) supérfluo.
No fundo, talvez não ficasse mal
julgarmos que aqui ainda estamos no cerne de um conflito fundador da modernidade,
ou seja, o conflito entre o essencial e o supérfluo. Cantar a Natureza como
Gary Snyder a canta é partir em busca do essencial, é abraçar o Homem num
abraço à Terra, pois «Esta viva terra
ondulante / é tudo o que existe, para sempre // Somos o que ela é / e
ela canta através de nós — // Podíamos viver nesta Terra / sem roupas nem
instrumentos!» (s/p). Isto é, como vivíamos nesses tempos genesíacos em que o
Homem e a Mulher andavam nus sobre a Terra sem sentirem vergonha por isso, pois
o pecado ainda não os havia obrigado a dominarem a Natureza nem todos os
animais sobre ela existentes. Bons tempos.
2 comentários:
generosa a tua leitura, camarada
Ora, ora. Grato pela leitura, limito-me a dar conta de como ocupo os dias.
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