segunda-feira, 30 de outubro de 2017

PLAY HOUSE


Do dramaturgo britânico Martin Crimp (n. 1956) já o Teatro da Rainha havia encenado Definitivamente as Bahamas. Play House mantém com essa peça uma óbvia relação. Em ambas assistimos aos desassossegos na vida de um casal. Porém, enquanto na primeira o homem e a mulher têm a pesar sobre si o desgaste da relação, em Play House é um jovem casal que encontramos em cena. O desconcerto desta peça, para quem tenha visto a primeira, começa precisamente na sensação que nos oferece de intróito à desventura. É como se Crimp nos perguntasse: querem ver como tudo isto começou? E mostra-nos tudo como se estivéssemos a andar de carrossel, um carrossel com cerca de uma dúzia de cenas onde vamos do deslumbramento inicial ao dissabor da discórdia, da paixão ao enfado, do entusiasmo ao tédio e à monotonia, num jogo de sobrevivência amorosa condenado a um fracasso que é sempre o de quem começa a cobrar ao outro a vida que tem por a ter em dependência alheia. 

O aspecto mais notável de Play House é a vã tentativa que nos oferece de uma eventual compreensão da individualidade. A vida a dois como fusão, diz Onfray, só gera confusão. A máxima também se aplica aqui.  Tal confusão conhece o seu princípio de deterioração quando a individualidade se esgota, quando o eu passa a ser exclusivamente em função do outro. Porque, mais tarde ou mais cedo, o eu vai cobrar a despesa. 

Crimp é inteligente no modo de superar a previsibilidade num texto algo disposto à monotonia. Na encenação levada a cabo pelo Teatro da Rainha essa monotonia foi ultrapassada por uma competente gestão da energia que os dois jovens actores colocam em palco, ficando patentes, a partir de certa altura, a raiva contida, os gestos de contenção marcados por frustrações implícitas na expressão de fantasias por concretizar. E há as caixas, desde o início, para as quais ambos olham como se olhassem para o vazio. Dessas caixas de Pandora saem presentes envenenados. 

Logo na cena inicial, o romantismo do quadro é descontinuado pelo conteúdo de uma dessas caixas. Não sabemos o que tem dentro. Sabemos apenas que se trata de um presente dela para ele, e somos surpreendidos quando ele abre a caixa e interroga-se com espanto: O que é isto? Merda de cão? Estranha maneira de começar. O processo de aprendizagem da vida conjugal aqui retratado encontra na personagem feminina um autêntico teste de resistência: ela cospe-lhe, bate-lhe, humilha-o... mas ama-o tanto quanto anseia sentir-se por ele amada. No final, diz-lhe que se lhe deu. Ele mente-lhe, sobretudo por passar o tempo a mentir a si próprio, julgando ser, pretendendo ser, o que em boa verdade não é. 

O vazio das caixas é, afinal, o vazio daquelas vidas que parecem surpreender os vizinhos no começo e acabam a querer ser pelos vizinhos surpreendidas. Sem efeito, porque então já a solidão demarcou o pântano onde a paixão se afundou. 

Há um pessimismo doméstico em Crimp que me agrada, parece-me honesto, autêntico. Ao contrário das suas personagens, que, encarnando os destroços humanos de uma época alienante, vivem na mais desastrosa das ilusões uma mentira que as corrói e empurra para o vácuo. São personagens naturalistas, por assim dizer. Mas o seu naturalismo é de uma desesperante alienação.

3 comentários:

maria disse...

sim, mas na cena final uma das personagens diz (a deixar entrar a esperança no círculo de pessimismo individual e doméstico):"E se..."

(ou fui eu que sonhei?) ;)

Ana Alexandre disse...

Concordo com a Maria. A cena final é dá a ideia que, apesar de toda rotina, o amor ainda existe. Há esperança.

hmbf disse...

Bem, quem tenha vista "Definitivamente as Bahamas" percebe em que deu a esperança. :-)