O maior problema com que o comunismo se confronta na
actualidade não é o inegável anacronismo de muitos dos seus defensores, mas sim
o insuportável anacronismo dos seus detractores. Não é possível falar de
comunismo hoje como se falava há 100 anos. A crítica aos erros cometidos tem
vindo a ser feita quer pela história, quer por muitos dos seus principais actores.
Como qualquer outra ideologia, o comunismo presta-se a diversas interpretações
e, disso podemos estar certos, será sempre mais fecundo enquanto força
inspiradora da acção do que foi nas múltiplas tentativas de ser levado à prática
literalmente.
Certas pessoas falam dos crimes cometidos sob a bandeira
do comunismo como se falassem de algo extraordinário. O crime não é próprio das
ideologias, como nunca foi das religiões. Os crimes cometidos sob a cruz de Cristo esgotam o cristianismo? Alguma vez o comunismo lançou uma bomba atómica?
Esteve o comunismo na origem das duas Grandes Guerras do séc. XX? A democracia
burguesa não tem também as suas inumeráveis vítimas disseminadas pelos campos
de concentração do capitalismo global, chamem-lhe fábricas ou oficinas
terceiro-munditas? Os campos de concentração foram uma invenção comunista? Uns males não legitimam outros, o que é válido tanto para
uns como para outros.
Creio que o maior desafio colocado a um comunista na actualidade
é o de levar a cabo um exercício crítico sobre o papel de uma ideologia cujo
princípio fundamental é o de libertar o homem da exploração por outros homens,
servindo-se das experiências do passado não como fardo mas como lição. A luta é
pertinente e impõe-se cada vez mais enquanto necessidade absoluta, algo que a
mais recente edição do Web Summit tornou claro com a exibição dos seus
engraçados robots neoliberais.
Também já não está apenas em causa deixarmos de ser explorados, está em causa a possibilidade de continuarmos a ser humanos. Os detractores do comunismo ainda não perceberam isso, encantados que andam com a sua cassete simplificadora da luta comunista. Dizem que é sempre a mesma a nossa cassete, como se, tragicamente, não fosse sempre a mesma a que lhes ouvimos quando pretendem desacreditar uma luta fundamental. A história dos comunistas é feita dessa desacreditação. Foi assim quando lutaram pela libertação dos povos em plenos regimes fascistas, é assim na luta pela dignificação de todos os seres humanos em plenos regimes pseudodemocráticos.
Também já não está apenas em causa deixarmos de ser explorados, está em causa a possibilidade de continuarmos a ser humanos. Os detractores do comunismo ainda não perceberam isso, encantados que andam com a sua cassete simplificadora da luta comunista. Dizem que é sempre a mesma a nossa cassete, como se, tragicamente, não fosse sempre a mesma a que lhes ouvimos quando pretendem desacreditar uma luta fundamental. A história dos comunistas é feita dessa desacreditação. Foi assim quando lutaram pela libertação dos povos em plenos regimes fascistas, é assim na luta pela dignificação de todos os seres humanos em plenos regimes pseudodemocráticos.
Pressentirmos que assim continuará a ser não pode desanimar
quem se convença da justiça dos propósitos, antes oferece ao discurso um novo e
exigente sentido de clareza. A Guerra Fria pode ter acabado, mas a de uma tacanha tepidez
crítica ainda agora começou.
6 comentários:
«Como qualquer outra ideologia, o comunismo presta-se a diversas interpretações e, disso podemos estar certos, será sempre mais fecundo enquanto força inspiradora da acção do que foi nas múltiplas tentativas de ser levado à prática literalmente.»
Quer isto dizer que o Comunismo é uma ilusão teórica, no sentido de que não se pode praticar? Se for, concordo plenamente.
Não, não quer. Quer dizer exactamente o contrário. Isto é, quer dizer que o comunismo é uma realidade ideológica, que pode ser levada à prática, como qualquer outra realidade ideológica, enquanto horizonte de acção. Coloca-nos um horizonte, desafiando-nos a caminhar na sua direcção. Sempre, diariamente, de múltiplas formas e maneiras.
Como é que podemos acreditar nos comunistas se eles ainda não assumiram os seus próprios erros?
Como é que podemos acreditar nos comunistas quando eles defendem a revolução de Outubro e não a questionam?
O exercício de varrer para debaixo do tapete a tragédia dos gulags e dos assassinatos em massa confere dúvida e desconfiança e faz aumentar o número dos "detractores".
Para não falar dos exemplos de regimes que perseguem a via do comunismo e que não são nada edificantes.
As suas questões são interessantes, dispensavam a clandestinidade. :-)
A primeira pergunta parte de um pressuposto errado, pois se muitos comunistas há que, como muitas outras pessoas, não assumem os seus próprios erros, outros tem havido que desde há muito os assumem. Repare que o próprio Lenine, ainda a Revolução ia no adro, já falava e citava e mencionava erros e falhas e lapsos cometidos.
Neste sentido, e em contradição com o que afirma a seguir, o famoso Relatório Khrushchov, de 1956, desmente a ideia feita de "varrer para debaixo do tapete a tragédia dos gulags e dos assassinatos em massa".
Quanto à segunda pergunta, não vejo em que possa estar fundamentada. Não vejo como não defender uma revolução que libertou um povo do czarismo. Estará informado sobre o que era a Rússia antes da revolução de Outubro, que foi um momento histórico importantíssimo na direcção de uma sociedade mais justa.
Já a sua última afirmação merece-me alguma concordância. Julgo que seria, de facto, importante haver um discurso mais claro e até condenatório de práticas ainda hoje levadas a cabo debaixo da bandeira comunista mas que nada têm que ver com o ideal de liberdade e de respeito pelas pessoas inerente à ideologia comunista.
Façamos o seguinte exercício, meramente académico. Não considerando de todo que na China actual tenhamos em vigor um regime comunista, embora exista uma forte inspiração herdeira do maoísmo, pergunto:
- Onde será que morrem mais pessoas de fome, na China ou nos EUA?
- Onde será que são condenadas à morte mais pessoas, na China ou nos EUA?
- Onde será que são assassinadas mais pessoas por ano, na China ou nos EUA?
- Onde será que a tortura é mais utilizada como forma de obter prova, na China ou nos EUA?
- Que país, historicamente, mais danos provocou noutros países, inclusivamente invadindo-os, a China ou os EUA?
Respondidas estas questões, e outras que poderíamos acrescentar sobre direitos na área da saúde, educação, etc., julgo que os EUA, enquanto baluarte do capitalismo, não ficariam bem na fotografia. No entanto, por que será que no mundo ocidental as pessoas tendem a simpatizar mais com os EUA do que com a China? Presumo que a resposta seja a liberdade individual, o direito de expressão dos povos, o regime democrático, mesmo quando permeável a tipos como Trump, a liberdade de imprensa, mesmo que, em abstracto, seja uma liberdade fortemente condicionada por interesses económicos e as suas promiscuas relações com o poder político.
O desafio continua a ser, pois, enorme: uma sociedade sem classes onde a liberdade individual não ponha em causa o equilíbrio da comunidade, gerando desigualdades como as cada vez mais profundas e inaceitáveis que o capitalismo selvagem fomenta na era da globalização.
O problema é que os defensores do comunismo continuam, hoje, a defendê-lo como há 100 anos (embora sem o mesmo entusiasmo) - da Coreia do Norte ao PCP. O problema do comunismo é que foi experimentado em demasiados países e em todos falhou - do ponto de vista económico, da liberdade dos cidadãos; criou o terror assassinando milhões de pessoas, e esses crimes são imperdoáveis. Não se pode andar a brincar com uma ideia anquilosada, negada múltiplas vezes pelo povo. Antropologicamente o comunismo é uma impossibilidade. É, então, altura de abandonar essa ideia. Porque sim, urge combater o capitalismo neoliberal dos robôts da web summit, dos Estados e empresas que estão a destruir a Terra (onde se inclui a China, comunista [?]).
Diz-se que o comunismo falhou, como se o comunismo fosse uma pílula. Não se diz que o capitalismo falhou, porque em nenhuma circunstância o capitalismo se assemelha com uma pílula. OI capitalismo é a ideologia sem ideologia. Logo, é difícil apontar-lhe as falhas. Quando pensamos a globalização do capitalismo, raramente lhe reconhecemos como resultado o agravamento das assimetrias entre os povos. Como há tempos revelava um estudo, 1% da população global detém mesma riqueza dos 99% restantes. Por que não dizemos que isto é uma falha? Por que não nos serve isto como prova de um enorme falhanço do capitalismo? Talvez por nos sentirmos incluídos naquele 1%, ou por não gostarmos de reconhecer o estatuto miserável que nos cabe nesse 1%, apesar de tudo bem melhor que os restantes 99%, ou porque simplesmente andamos iludidos com o que temos, ou porque nos basta um mundo assim tão descaradamente assimétrico desde que não nos excluídos dos tais 1%, ou incluídos na indigência da maioria, os 99% de explorados para que 1% prosperem… Enfim, é fazer as contas.
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