Existem várias versões acerca da origem do cravo enquanto
símbolo da revolução portuguesa de Abril de 1974. A mais conhecida, talvez seja
a de uma rapariga que ofereceu um cravo a um militar depois de este lhe ter
pedido um cigarro. Os cravos, trazia-os ela da loja onde trabalhava e que então
comemorava um ano de serviço. A loja não abriu, os cravos foram ver passar
soldados. Outra versão remete para uma florista, que podia ser a Valéria de um
conto de Abel Neves (n. 1956). Temente a Deus, militante comunista, ficou
desamparada quando com o passar dos anos ficou a saber que ambos lhe tinham
morrido: Deus de morte natural, o comunismo de uma doença infantil. O desamparo
é uma das características marcantes em muitas das personagens de O Bibliófago e
Mais Historietas Breves (Edições Adab, Abril de 2017), colectânea de contos a
merecer muito mais do que ficar esquecida nas estantes atoladas das livrarias. Abel
Neves tem vastíssima obra dramática publicada e levada à cena, sendo também
autor de livros de poesia, ficção narrativa e ensaio. É um dos nossos mais
relevantes escritores vivos, pelo que não se compreende o relativo esquecimento
a que parte da sua obra tem sido sujeita. Os contos coligidos em O Bibliófago
são apenas mais uma prova da sua destreza narrativa, focados em personagens geralmente
verosímeis cuja genuinidade não estorva o extraordinário. De ordinário têm as
profissões e as ocupações, sejam floristas ou vigilantes, carteiristas ou
talhantes, dedicadíssimos donos de restaurantes, sapateiros... Cumprem a vida em
locais facilmente identificáveis, nas ruas de Lisboa, a sua maioria, mas também
em Viseu, ou deslocando-se de Mangualde para a capital. Em certo sentido,
podemos dizer que estas personagens se identificam com o que do mundo rural migrou
para a cidade. As suas acções estão eivadas de sonho, como o segurança “Dentinho”
que: «Sonhava com praias na Austrália, veredas acidentadas no Peru, focas e
icebergs do árctico, mas também com hotéis de palmeira e jacuzzi e bares de gin
tónico, raparigas alegres e desprendidas» (p. 97). A realidade não lhes
sacrifica o sonho, não as impede de ficcionar a existência, embora o sonho
surja quase sempre desfeito pela monótona quotidianiedade das suas vidas. A excepção
são os momentos de transformação, as anomalias, as metamorfoses que incutem na
descrição dos factos uma dimensão alegórica deveras cativante. Acontece com O
Bibliófago que ofereceu título à colectânea, um literal devorador de livros que
morre depois de se perder com as edições baratas destacadas semanalmente nos
jornais. A fast-food provoca danos colaterais inimagináveis. Outro caso curioso
é o de Franco, criador de suínos que acaba no espeto depois de ele próprio se
transformar num porco. Ainda nos domínios da suinicultura encontramos Os Nobres
da Betesga, entre os quais um deles ficou com o nariz tão danificado pelo pó
dos livros que ao morrer mais parecia «um homorco, um misto de homem e porco»
(p. 64). Destaque ainda, pela invulgaridade dos factos, para um pobre cão que à
força de ter sido tão tratado como humano aprendeu custosamente a falar para
dizer: «Quero voltar a ser cão». A fábula, aliás, é outro dos territórios penetrado
amiúde pela imaginação de Abel Neves. No entanto, não é esse o mais
interessante dos territórios vislumbrados nestes contos. Prefiro, por exemplo,
a docilidade de Pombo, vigilante profissional que durante as férias faz tudo
para agradar à sua Genoveva: «Ele e as estrelas eram difíceis de compreender.
Por mais que abrisse o olhar à noite, por mais que quisesse ser outro sendo
ele, Pombo continuava o pacato vigilante do centro comercial» (p. 81). Mas é
neste continuar que ele se torna especial, por nos oferecer com o seu exemplo a
história de um homem reduzido ao papel que lhe reserva a vida: «A vida podia
ser isso também, uma ocupação, os dias continuando tão indiferentes como a
natureza aos seus nomes» (p. 176). Ao mostrar-nos assim a vida, Abel Neves
faz-nos descer a uma realidade que, afinal, é a nossa mais humana condição, uma
realidade inacessível a quem a mire pelos binóculos da lei e da ciência. Nestes
contos, o exemplo surge da observação directa e participativa. Afinal, eles
germinam do palco onde todos nós somos actores, com mais ou menos jeito para
manigâncias, com mais ou menos truques, com dissemelhantes graus de capacidade
para a subversão dos papéis. A páginas 57 damos mesmo com um actor de profissão, desafia alguém
do público a pegar numa pistola que traz consigo e a disparar sobre ele. Diz:
«O interessante no teatro é que se eu vos disser que a minha arma está
carregada vocês acreditam que está, e também faz parte do jogo saber que esta
arma é minha, mas não é» (p. 57). Chamem-lhe bluff ou prestidigitação,
chamem-lhe cinismo ou representação, este jogo é, em suma, o que melhor define
a existência de todos quantos passam a vida a fingir que não vão
morrer.
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