Valéria acreditava num Deus barbudo, sentado num trono de mármore branco trabalhado ao modo da Renascença, e por isso a sua vida era uma ficção. Levantava-se pelas cinco e meia para recolher as flores que levava para a esquina da praça e aí ficava até às quatro da tarde. Levava mais de cinquenta anos nisso, nessa ficção com flores. Desde que o regime mudara, mas não a sua crença no Deus barbudo, tinha o hábito de frequentar os comícios do Partido Comunista. Desenrolava a sua bandeirinha, passava-a a ferro, enrolava-a de novo e ia desfraldá-la diante dos seus dirigentes máximos, que falavam para ela, sabia que falavam para ela, enchia-se de orgulho por saber que os dirigentes máximos falavam directamente para ela, para a florista da esquina da praça, embora estivesse diluída no meio dos outros aficionados e quase não pudessem vê-la com a sua impecável bandeirinha desfraldada.
Eram muitíssimos os que correspondiam, muitos eram católicos, comunistas alguns e muitos mais doutras cores e feitios, eram muitíssimos os que correspondiam à simpatia de Valéria, e o negócio prosperava, das rosas simples aos ramalhetes de múltiplas flores. Era uma florista rica, amada.
Numa tarde disseram-lhe que Deus tinha morrido, que vinha escrito nos jornais, que as autoridades não podiam fazer nada, que Deus tinha morrido de morte natural e, pronto, havia que viver sem Ele, como se, de repente, uma andorinha deixasse de contar com o seu beiral. Foi uma parte de si que voou. Procurou ajeitar-se com a notícia e sobreviveu, continuando a frequentar as igrejas e a respeitar o compromisso dos gladíolos nas jarras dos altares. Sentava-se nos bancos corridos, junto à coxia central, olhava as imagens dos santos, os vitrais e o tecto arqueado, em pedra, e parecia-lhe que o seu Deus barbudo estava agora mais presente depois de saber que tinha morrido, ou melhor, era igual, igual era ele estar morto ou vivo porque ela deitava a sua fé para além das palavras que lhe diziam, mesmo que fossem ciência ou arte maior.
Já não se passou o mesmo quando lhe anunciaram que o comunismo tinha falecido, pelo menos aquele que estava pintado na sua bandeirinha. Como fora possível que ninguém lhe tivesse dito antes que havia uma doença infantil no comunismo e que o paraíso terreal, esse jardim onde todos tinham o seu canteiro florido, já não seria decretado proximamente? Ainda se penteava e arrumava o melhor vestido para marcar presença nos desfiles de protesto, e levava a sua pantalha vermelha, mas deixara de a soltar. Enrolada na mão, era agora uma espécie de bandeirinha de chefe de estação e que ela já não erguia, nem para saudar os dirigentes amigos, que já não lhe falavam directamente. Reservou-a junto de um velho petromax e foi-se esquecendo, mas não dos sentimentos que vivera com ela. Compreendeu que ainda podia contar consigo no meio das flores.
Abel Neves, in O Bibliófago e Mais Historietas Breves, Edições Adab, Abril de 2017, pp. 30-31.
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