segunda-feira, 13 de novembro de 2017

PAI

A poesia é não só, mas também, um discurso das emoções. Mais do que exprimir sentimentos, resvalando por vezes para o sentimental, o poema, como qualquer outra obra de arte, coloca-nos em contacto com a emoção. Um filme emociona-nos, uma canção emociona-nos, um quadro emociona-nos, uma peça teatral emociona-nos. Porque haveria de ser diferente com o poema? Mau seria que se esgotasse na emoção a razão de ser da obra de arte. Ela instiga a reflexão, aclara o obscuro, introduz-nos e inicia-nos no esotérico, exercita o pensamento, mas não podemos esquecer nunca esta ligação da obra de arte às emoções. Ainda para mais quando se torna evidente a conexão entre as emoções e o pensamento. Podemos julgar que na raiz deste contacto, no que respeita à obra de arte, reside uma ideia de beleza, conquanto aceitemos que essa ideia de beleza não recuse a fealdade enquanto contraponto que reforça o belo. A fealdade é aliada da beleza, na medida em que a sua exposição leva-nos a ansiar pelo seu contrário. Sentimentos tais como a raiva e o ódio exigem-nos um encontro com a solidariedade e com o amor. A tristeza, a alegria, a melancolia, que é mais um estado de alma do que um sentimento, surgem entre os mais universais dos estímulos para a concepção do poema: o amor e a morte. 
A elegia será, provavelmente, a forma poética que melhor interliga o amor e a morte. Carlos Bessa (n. 1967) publicou recentemente "uma elegia" de 33 poemas, em memória de seu pai, falecido no ano de 2016. O título Pai (do lado esquerdo, Maio de 2017) vai directo ao assunto, escusando apetrechos líricos que a situação de luto desvaloriza. Há neste livro poemas arriscados, como os intitulados Mesa Mediterrânica e Percursos, devedores in extremis de uma necessidade de clareza que o título do conjunto sugere. Noutros poemas, o autor ocupa-se na recuperação de memórias remexendo cofres ao abandono, capta as rotinas do pai falecido, caracteriza-lhe a personalidade e constrói-lhe uma história, expõe as últimas horas e rememora situações passadas, numa busca de sentido para a vida que é, ao mesmo tempo, uma tentativa de compreensão d’«O estupor da morte que nos assalta a razão» (p. 23). 
No que de melhor ofereceu à filosofia, Martin Heidegger desenvolveu a ideia do ser enquanto ser para a morte. Sabemos que não teremos a experiência da nossa própria morte, mas a experiência da morte dos outros é, de algum modo, a experiência limite que podemos ter da nossa morte. Tratando-se da morte de um pai, a relação de proximidade intensifica essa experiência. Isso mesmo surge sublinhado num pequeno e belíssimo poema intitulado Espelho: «Dizem que somos parecidos / como quando ao nascer se projectam / laços e afinidades. Devemos ser, / mau grado as tantas diferenças. / Somos de tempos distintos. / Na verdade, tu sempre foste melhor, / mais perto dos outros. Eu hesito, / ainda, como se o nome, o meu, / fosse todo o peso de uma herança» (p. 35). A herança não é aqui apenas a de um nome, nem a que os elos filiais determinam, é igualmente uma herança de valores que a perda obriga a reconhecer com a mesma clareza com que se reconhecem «laços e afinidades». 
Os momentos de tardia declaração de admiração que surgem em alguns destes poemas, sem nunca se perderem num sentimentalismo inócuo, são testemunhos pungentes de uma lição para a vida proferida pela experiência prática da morte: «O corpo está na capela mortuária, / tem de falar com uma funerária. Como / se nos piores momentos a morada da poesia / fosse o silêncio que rompe a noite num ah, / há que agir, que falar, que acordar, que pensar. / É preciso combater a anestesia e / arrumar a dor» (p. 26). Talvez os versos, na sua inutilidade mais do que acusada, denunciada, até apregoada, sirvam pelo menos para isto: arrumar a dor. Assim sendo, é um sinal de arrumação que dos 33 poemas que compõem o livro, em coincidência com a data de nascimento da personalidade invocada, o último tenha por tema precisamente o amor. A morte e o amor, os mais universais dos estímulos para a concepção de um poema, numa elegia ao jeito da síntese que a poesia permite quando é sinal de beleza:

CARTAS, MAPAS E LIVROS

O amor, mil maneiras de enlouquecer, é um aviso.
O que importa é o arrebatamento e esquecer,
não fazer perguntas ao passado, às histórias tristes
e banais, manchadas de ritmos que afugentam.

O amor, como lâmpadas que se enroscam e raízes
que se infiltram e espalham num labirinto de confronto.
Frases encaixadas umas nas outras e associações que
envolvem o corpo num peso sem peso, sem infâmia,

apenas luz, apenas cor. Como naquela solarenga tarde
de frio em que os livros foram nossos aliados
na longa caminhada que nos levou por um circuito
de árvores, ruínas e ruas esburacadas de Ermesinde.

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