Era quase inverno outra vez,
eu escrevia pequenas frases, sobre nada
pois nada havia que se pudesse dizer:
tudo te faria lembrar a vida ou a morte
— e era sempre a mesma pouca delicadeza
escrevia-te
pequenos bilhetes sem poder dizer
não te vejo mais, não te vejo nunca mais,
tu respondias sem nunca dizeres
já não importa
Nada que se pudesse dizer:
escrevia como se fosse possível,
respondias como se não fosse nada
Dizias — quando estivermos juntos outra vez,
e eu lia — nunca mais, não te vejo nunca mais
pequenas frases, feitas de nada
tudo parecia demasiado vivo
para não lembrar que a morte
ia apagando do mundo
tudo quanto se pudesse dizer
escrevia,
e em frente da janela
as árvores perdiam folhas de vidro,
de um vermelho nítido, definitivo
escrevia — não te vejo nunca mais, e
traduzia tudo em palavras inofensivas, banais
— nada que se pudesse dizer —
depois a morte levava as cartas
Rosa Maria Martelo (n. 1957), in Matéria (2014). «A poesia de Rosa Maria
Martelo é abstracta, culta, algo irónica; há um sujeito poético que se dissolve
num “nós”, que interpela um “tu” ou se transmuta no objecto. O universo antes e
depois desse sujeito é irremediável e irreparavelmente disparatado, desunido. O
eu retrai-se, recua, desinveste, elegantemente. Delicadeza, elegância, aparente
leveza e voo constituem o húmus desta poesia que se depura, passo a passo, até
ao osso, até à morte, essa presença antecipada. E não cessa de repetir o mesmo,
a não-identidade perene de nenhuma impressão do mundo, nos múltiplos traços da
sua diferença, desordem e impossível unidade» (Maria Conceição Caleiro, Público). «Tal como Adorno mostra com a noção de dialéctica negativa, ou Derrida com o
conceito de différance, aquilo que está em causa é a impossibilidade de
totalizar no discurso ou no mundo qualquer movimento da história ou do
conhecimento: a relação com a língua e com o mundo é constitutivamente da ordem
do desfasamento. É esta consciência do desfasamento como matriz da língua que
encontramos em Rosa Maria Martelo. Não há na língua promessa de revelação,
antes a consciência da penetração do dentro pelo fora, e do fora pelo dentro.
Do mundo pela língua e da língua pelo mundo. Este é um movimento de reenvio e
de subtracção da língua a si mesma, da razão à sensibilidade e da sensibilidade
à razão» (H. G. Cancela, Contra Mundum).
2 comentários:
Gosto muito da poesia dela.
É um grande nome da poesia contemporânea.
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