sexta-feira, 3 de novembro de 2017

SIRINGE

A história foi-nos contada pelo uruguaio Eduardo Galeano (n. 1940 – m. 2015) no livro O Caçador de Histórias (Antígona, Setembro de 2017). Um caçador, perdido nos labirintos da selva amazónica, deixou-se adormecer. Foi despertado por um som nunca antes ouvido. Um pica-pau tinha debicado um ramo, abrindo nele buracos através dos quais o vento passava produzindo uma música lindíssima. Assim terá nascido a primeira flauta. Esta história coloca em cena três actores: um homem, um pica-pau, o vento. O que os aproxima é a música, uma música inesperada, matéria invisível que chega aos ouvidos do homem como efeito de causas espontâneas, naturais, que interligam a acção do vento sobre uma construção do pica-pau e a faculdade de espanto inerente ao homem. Por espanto entendamos aqui a capacidade de se emocionar com o que ouviu, o que lhe exige algo mais do que ser dotado de ouvidos. Antes de ter sido transformada em arte, a música era a “matéria do ar”. Tal como a luz, de resto, antes de a pintura e a fotografia e o cinema se terem lançado na missão de a transfigurarem tentando apropriar-se da sua natureza esquiva.
Siringe, explica-nos o dicionário, é o órgão que nas aves permite a emissão de sons. Uma espécie de ramo, presumo, através do qual o ar produz o canto. Estamos no campo da biologia, mas podíamos estar no da mitologia. Siringe é também a flauta de Pã, o deus dos bosques, e, na forma de Sírinx, a ninfa por quem Pã se apaixonou, ninfa que cansada de fugir do pretendente foi transformada num caniço pelas divindades. Daí a flauta de Pã. Tudo isto nos é relatado na primeira parte de cinco que formam o poema Siringe, onde Rosa Maria Martelo (n. 1957) encontrou título para o seu mais recente livro. Siringe (Averno, Março de 2017) reúne, além desse poema que lhe deu título, os livros A Porta de Duchamp (2009) e Matéria (2014).
São de ordem diversa os elementos que ligam os textos incluídos neste volume, justificando-se a sua edição conjunta. Desde logo a desmontagem de um tom reflexivo que só em aparência surge como marca principal destes poemas. Se devemos pressupor essa reflexividade como anterior ao texto, não podemos deixar de notar nele a força do acidente enquanto elo capaz de reunir no poema dados decorrentes da ciência com outros provenientes da mitologia. Extravasando os limites da reflexividade, o texto assume uma outra dimensão, liberta de constrangimentos científicos, independente até de emoções que o transportariam para domínios exclusivos da poesia. O texto testa os princípios da lógica: «A face exterior do lado de dentro / não se distingue da / face interior do lado de fora; / fina membrana, a mesma vibração» (p. 71). Nisto, os versos de Siringe coincidem com o mote dado pelas prosas de A Porta de Duchamp.
Porte, 11, Rue Larrey data de 1927, foi construída por um carpinteiro de acordo com as instruções determinadas por Marcel Duchamp. A característica única desta porta era a de que podia estar aberta e fechada ao mesmo tempo, subvertendo assim o princípio aristotélico da não contradição: duas afirmações contraditórias não podem ser ambas verdadeiras. Mas sobre a porta de Duchamp podíamos ao mesmo tempo dizer: a porta está fechada, a porta está aberta. A oposição estava desfeita pela prática. Na sua forma, os próprios textos de Rosa Maria Martelo colocam-nos perante uma realidade similar: são prosa, são poesia, são poema, são aforismo. E no interior desses textos encontramos por diversas ocasiões a negação dos opostos, como nesse belíssimo texto que levou o pertinente título de Sombras: «A noite não é o avesso do dia, sequer o seu contrário — de noite os motores do dia trabalham ainda, desengatados, um pouco como bate o coração de quem dorme» (p. 13).
É nesse primeiro conjunto que somos apresentados à figura do “fotógrafo celeste”. Ele surge nos textos com os títulos Nuvens, Lama, Retrato com Espelho, como alguém que procura capturar a cor do céu. A cor é outro dos motivos essenciais nesta poesia. No livro Matéria são vários os poemas que remetem directamente para cores: Negro, Verde, Vermelho, Amarelo, Azuis, Branco… E no poema A Última Cor lemos: ««Venenoso escuro» disse a criança / ao mergulhar na água o pincel sujo de tinta. // Aviso, sinal, apocalipse, rio sem futuro, / pequeno muro onde cor nenhuma / fechava a toda a luz um copo de água» (p. 65). Tanto a cor como o som são materiais por excelência desta poesia, materiais sem matéria, ou, se quisermos, os materiais do vazio e do nada que percorre os textos como sentença final. A função, se assim podemos dizer, desse vazio consumado no texto é abrir «caminho para o outro lado do visível» (p. 10). Que lado será esse? Talvez convenha à resposta a subjectividade de cada leitor, como convém à criança que por vezes surge nos poemas um enquadramento do mundo diferente daquele que lhe é dado pela lógica do pensamento amadurecido pela idade.

Não podemos, no entanto, deixar de fazer notar a relevância que nestes poemas assume a observação da natureza. Com maior clareza nos poemas de Matéria, a natureza é o princípio através do qual se chega, paradoxalmente, à densidade imaterial da imagem poética, tal como à música chegámos pela passagem do vento nos ramos depenicados pelo pica-pau. Um fruto a desprender-se de uma árvore, a árvore despida de inverno, a vibração dos troncos, assistir ao crescimento de uma folha, o passar das estações constatado na transformação das plantas do jardim, são estímulos a uma experiência sinestética do mundo: «Mais tarde ainda, um poeta escreveu isto de outra maneira. Disse ele que «defronte dos limoeiros crescia o ar amarelo / dedicado / a quem por lá se luzia». Como se humanamente falasse pelos olhos dos insectos atordoados no calor. Foi quando eu soube que a sinestesia é o mais humano dos pontos de vista não humanos: ver com os sentidos todos juntos, como se ver não exigisse crença nenhuma. Como a música» (p. 42). Esta experiência é já um paradoxo poético, na medida em que ao observar os elementos da natureza observa em si mesmo a capacidade de um ver autónomo do órgão directamente associado à visão. Como sucede em muitos haikus de Bashô, os sons passam a ter cores, os sentidos misturam-se, a imagem poética «é (e não é) / a sombra de uma ideia projectada» (p. 73). É (e não é) a cor e o som feitos palavra. 

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