A história foi-nos contada pelo uruguaio Eduardo Galeano
(n. 1940 – m. 2015) no livro O Caçador de Histórias (Antígona, Setembro de
2017). Um caçador, perdido nos labirintos da selva amazónica, deixou-se
adormecer. Foi despertado por um som nunca antes ouvido. Um pica-pau tinha
debicado um ramo, abrindo nele buracos através dos quais o vento passava
produzindo uma música lindíssima. Assim terá nascido a primeira flauta. Esta
história coloca em cena três actores: um homem, um pica-pau, o vento. O que os
aproxima é a música, uma música inesperada, matéria invisível que chega aos
ouvidos do homem como efeito de causas espontâneas, naturais, que interligam a acção do vento sobre uma construção do pica-pau e a faculdade de espanto inerente ao homem. Por espanto entendamos aqui a capacidade de se emocionar com o que ouviu, o que lhe exige algo mais do que ser dotado de ouvidos. Antes de ter sido
transformada em arte, a música era a “matéria do ar”. Tal como a luz, de resto,
antes de a pintura e a fotografia e o cinema se terem lançado na missão de a
transfigurarem tentando apropriar-se da sua natureza esquiva.
Siringe, explica-nos o dicionário, é o órgão que nas aves
permite a emissão de sons. Uma espécie de ramo, presumo, através do qual o ar
produz o canto. Estamos no campo da biologia, mas podíamos estar no da
mitologia. Siringe é também a flauta de Pã, o deus dos bosques, e, na forma de
Sírinx, a ninfa por quem Pã se apaixonou, ninfa que cansada de fugir do
pretendente foi transformada num caniço pelas divindades. Daí a flauta de Pã.
Tudo isto nos é relatado na primeira parte de cinco que formam o poema
Siringe, onde Rosa Maria Martelo (n. 1957) encontrou título para o seu mais
recente livro. Siringe (Averno, Março de 2017) reúne, além desse poema que lhe
deu título, os livros A Porta de Duchamp (2009) e Matéria (2014).
São de ordem diversa os elementos que ligam os textos
incluídos neste volume, justificando-se a sua edição conjunta. Desde logo a
desmontagem de um tom reflexivo que só em aparência surge como marca principal
destes poemas. Se devemos pressupor essa reflexividade como anterior ao texto, não
podemos deixar de notar nele a força do acidente enquanto elo capaz de reunir
no poema dados decorrentes da ciência com outros provenientes da mitologia. Extravasando
os limites da reflexividade, o texto assume uma outra dimensão, liberta de constrangimentos
científicos, independente até de emoções que o transportariam para domínios exclusivos da poesia. O texto testa os princípios da lógica: «A face exterior do lado de
dentro / não se distingue da / face interior do lado de fora; / fina membrana,
a mesma vibração» (p. 71). Nisto, os versos de Siringe coincidem com o mote
dado pelas prosas de A Porta de Duchamp.
Porte, 11, Rue Larrey data de 1927, foi construída por um
carpinteiro de acordo com as instruções determinadas por Marcel Duchamp. A
característica única desta porta era a de que podia estar aberta e fechada ao
mesmo tempo, subvertendo assim o princípio aristotélico da não contradição:
duas afirmações contraditórias não podem ser ambas verdadeiras. Mas sobre a
porta de Duchamp podíamos ao mesmo tempo dizer: a porta está fechada, a porta
está aberta. A oposição estava desfeita pela prática. Na sua forma, os próprios
textos de Rosa Maria Martelo colocam-nos perante uma realidade similar: são
prosa, são poesia, são poema, são aforismo. E no interior desses textos
encontramos por diversas ocasiões a negação dos opostos, como nesse belíssimo
texto que levou o pertinente título de Sombras: «A noite não é o avesso do dia,
sequer o seu contrário — de noite os motores do dia trabalham ainda, desengatados,
um pouco como bate o coração de quem dorme» (p. 13).
É nesse primeiro conjunto que somos apresentados à figura
do “fotógrafo celeste”. Ele surge nos textos com os títulos Nuvens, Lama,
Retrato com Espelho, como alguém que procura capturar a cor do céu. A cor é
outro dos motivos essenciais nesta poesia. No livro Matéria são vários
os poemas que remetem directamente para cores: Negro, Verde, Vermelho, Amarelo,
Azuis, Branco… E no poema A Última Cor lemos: ««Venenoso escuro» disse a
criança / ao mergulhar na água o pincel sujo de tinta. // Aviso, sinal,
apocalipse, rio sem futuro, / pequeno muro onde cor nenhuma / fechava a toda a
luz um copo de água» (p. 65). Tanto a cor como o som são materiais por
excelência desta poesia, materiais sem matéria, ou, se quisermos, os materiais
do vazio e do nada que percorre os textos como sentença final. A função, se
assim podemos dizer, desse vazio consumado no texto é abrir «caminho para o
outro lado do visível» (p. 10). Que lado será esse? Talvez convenha à resposta
a subjectividade de cada leitor, como convém à criança que por vezes surge nos poemas um enquadramento do mundo diferente daquele que lhe é dado
pela lógica do pensamento amadurecido pela idade.
Não podemos, no entanto, deixar de fazer notar a
relevância que nestes poemas assume a observação da natureza. Com maior clareza
nos poemas de Matéria, a natureza é o princípio através do qual se
chega, paradoxalmente, à densidade imaterial da imagem poética, tal como à
música chegámos pela passagem do vento nos ramos depenicados pelo pica-pau. Um
fruto a desprender-se de uma árvore, a árvore despida de inverno, a vibração
dos troncos, assistir ao crescimento de uma folha, o passar das estações
constatado na transformação das plantas do jardim, são estímulos a uma experiência
sinestética do mundo: «Mais tarde ainda, um poeta escreveu isto de outra
maneira. Disse ele que «defronte dos limoeiros crescia o ar amarelo / dedicado
/ a quem por lá se luzia». Como se humanamente falasse pelos olhos dos insectos
atordoados no calor. Foi quando eu soube que a sinestesia é o mais humano dos
pontos de vista não humanos: ver com os sentidos todos juntos, como se ver não
exigisse crença nenhuma. Como a música» (p. 42). Esta experiência é já um
paradoxo poético, na medida em que ao observar os elementos da natureza observa
em si mesmo a capacidade de um ver autónomo do órgão directamente associado à
visão. Como sucede em muitos haikus de Bashô, os sons passam a ter cores, os
sentidos misturam-se, a imagem poética «é (e não é) / a sombra de uma ideia
projectada» (p. 73). É (e não é) a cor e o som feitos palavra.
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