Esta alma de que falo, supercara
Costumava pensar que um subsídio
é que era, dava um jeitão para escrever,
o que significa, de forma mais fria, responder
a esse apelo conforme o clima e a paisagem,
um pouco na mesma onda do cinema,
da responsabilidade política e, até, do crime
organizado. Escreveria melhor, decerto,
pensaria mais, ostentava outra ousadia,
muito mais próxima da realidade, ora não?
Como toda a poesia tem princípios,
não sei o que mais tem, é bom que se saiba
que o estado é meu devedor e que não relego
o direito de ser um poeta de luxo, de ninguém
me ler o que, acredito, me torna, assim, universal:
não admito a existência sem uma casa grande,
cheia de segredos, impecável, sem uma empregada
que, além do resto, me trate da roupa, receba
pequenos extras, me trate com respeito
e alguma estima. Sem telemóvel é que não!
Senão como falarei para o infinito, para deus,
para os outros poetas sobre a graça
que tem a fina desgraça deste mundo? E as contas,
as contas têm de ser pagas, imaginem só
ficar a dever alguma coisa a alguém! Não há saco
para autarcas e muito mais elegante é pagar,
ao cêntimo, a esses que cobram preços exorbitantes
e, tolos, imaginam que sou eu ao pagá-los.
Também não se suporta vinhos medíocres: fazem mal
ao estômago e qualquer sagitário tem isso como adquirido,
que vinhos só muito bons e libações só mesmo elegantes.
Além de que gosto de guiar, de me precipitar
pelas noites cerradas dos arredores, de passear nas avenidas,
pequeno frisson de dar toques breves na morte:
quase escândalo que comungo com os políticos,
meus superiores e chefes, é que o mecânico me leve,
sem pestanejar, cinquenta euros à hora. Não admira,
pois, que só escreva se gastar dinheiro, paciência
e génio em símbolos o que, aliás, é congénito, não´
resisto a caprichos desmedidos que me namorem a alma.
Esta alma, de que falo, tornou-se complexa, letal:
quando, por exemplo, trabalho nas coisas inúteis da nação,
desacompanha-me, abandona o seu refúgio de nervos
e sangue e põe-se cá fora, ao lareú, a gozar com o respeito
que devo aos escritores, aos senhores doutores
do poder em toda a instância e lá vou eu parar
ao hospital à mínima emoção, ao mais pequeno sinal
de falta de ar. E falta tanto, o ar, em Portugal!
Ora, isso paga-se, a saúde não é de graça,
nem para graças, se bem que gosto de enfermeiras, éter
e de pequenas brochuras supercaras com cenas
de campo e tratamentos ambulatórios.
Se tivesse ocasião para me aconselhar com o médico
que escreve um dos outros livros, era contado
que a obra morria aqui mesmo e agora. Mas já tenho
título para o novo poema: «ponto de fusão baixo e volátil».
Vou pedir-lhe um atestado para faltar ao trabalho
sem ter de descontar no ordenado
e no tempo de férias.
Manuel Fernando Gonçalves, in Romance Ardente, Frenesi, Setembro de 2017, pp 28-29.
2 comentários:
Gostei muito
Manuel Frenando Gonçalves é um dos meus poetas preferidos.
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