A palavra assédio aparecerá muito nos balanços que hão-de
ser feitos de 2017, por culpa dos escândalos de assédio sexual envolvendo
nomes importantes de Hollywood. É como se o assédio fosse coisa de gente fina,
actores, produtores, actrizes, músicos, artistas. Por cá, o assédio não existe.
Não temos gente fina. Somos um país de brandos costumes povoado por saloios e singelíssimas elites, paraíso plantado à
beira da Europa. Não há portugueses nos Panama Papers, a WikiLeaks é para gente
do topo. Estará Portugal no mapa? Nós somos da base, isto é, somos do buraco onde há muito nos enfiámos.
O turista gosta de Portugal porque Portugal não tem dessas coisas ruins que se vêem lá fora, tem a
Madonna à procura de casa. Chega. E baladas comoventes que conquistam festivais, e a luva branca do Éderzito. Certo, temos incêndios. Mas que é isso comparado com Allahu
Akbar? Eucaliptos em chamas não gritam Allahu Akbar! Se o maior defeito de
Portugal é esbanjar dinheiro em copos e gajas, aí estamos nós presidindo à
instituição que inda agora nos acusava de esbanjarmos dinheiro com copos e
gajas. Como se fosse defeito. Os estupradores portugueses não assediam nem
violam, fazem festinhas. Ninguém leva mal. Entretanto, um poema da brasileira
Nina Rizzi para balanço de 2017:
e danço um tango com você
eu li nas tls do mundo que mazombos e mazombas
acham bem normal um estupro, que as mina tão se
entregando
assim facim facim
e eu lembro que os afegãos estupram mulheres de burca
porque elas exageram no kajal e rímel
eu ouço que uma menina de 8 dá rindo o que eu não dou
chorando.
tenho vontade de vomitar enquanto olho o vão do metrô que
nunca
vai chegar.
não sai nos jornais, inúmeras gentes —
essas mulherzinhas também —
se jogam ali todos os dias.
eu não vomito. Hoje é aniversário da maria e quero
enfeitar seu corpo
de flores, de cheiros e uivos.
toda vez que penso na maria tenho vontade de chorar.
eu perdoo o mito da superioridade de kipling. perdoo o
esquerdismo
do ggm.
eu perdoo o oportunismo dos poetas do meu tempo.
você, peço licença ao seu pai exú, te perdoo não.
não engulo a sua arte e te mataria por isso,
sr. polanski, sr. brando, sr. aleijadinho.
penso nas normalidades desses senhores
ela se insinua
é pelo cinema, é por amor
por deus, deixe — viver a vida
ora, uma maria assim tão dada
uma maria assim tão nua
uma maria assim com virgindade tão apertada
uma maria como todas as outras, pronta pra violação.
maria, seus olhos imensos duas amêndoas me comovem.
sei que não sei dar amor a quem me estende a mão
eu amo o feio e a deformação
mas olha, você me olha
e eu só quero encher seu corpo das flores mais lindas
eu te amo maria
seu território também é meu
seu silêncio também é meu
amo você todos olhos moles, todas as marias violadas,
anônimas.
Nina Rizzi, in geografia dos ossos, Douda Correria,
Fevereiro de 2015, s/p.
3 comentários:
obrigada, Henrique. Pelas tuas palavras e pelo poema (que vou levar). Há tanto para falar sobre isto, todos temos tanto a aprender e a escutar. O assédio, a violência, têm progredido sob o manto do silêncio. Não, não se pode continuar em silêncio.
Muito bom.
Bom domingo
Domingo de trabalho, Ana. Mas obrigado.
Leva, leva, Maria. Leva e dá-lhe voz.
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