quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

OTIMISMO E NÃO DESESPERO

A filosofia política de Noam Chomsky (n. 1928) define-se pela conjugação do anarquismo, enquanto promotor do instinto humano para a liberdade, com o socialismo libertário, termo que apesar de gasto e muito mal-entendido continua a servir uma ideia de solidariedade mútua entre os homens. Em síntese, o seu pensamento reflecte com inabalável constância esse esforço de aproximação. As entrevistas coligidas em Otimismo e não Desespero (Elsinore, Novembro de 2017) são exemplo disso mesmo, quer quando tenta responder a questões genéricas sobre a essência da humanidade, quer quando se concentra nos problemas da actualidade.
Chomsky é inspirador, como Gramsci o conseguiu ser, quando a um muito apreciável pessimismo da inteligência contrapõe o vigoroso optimismo da vontade. Nisso nada acrescenta de especialmente novo. O interesse renovado por esta fórmula tem hoje outras implicações. Chomsky ultrapassa as fronteiras de um mero pessimismo metódico, sugerindo cenários de catástrofe no diagnóstico levado a cabo: «Acredito que a sobrevivência humana decente está em jogo. As primeiras vítimas serão, como sempre, os mais fracos e vulneráveis» (p. 87); «A destruição da espécie está ao nível de há 65 milhões de anos, a Quinta Extinção, que acabou com a era dos dinossauros» (p. 128); «Há boas razões para crer que já entrámos na Sexta Extinção, um período de destruição de espécies a uma escala monumental» (p. 148).
Se o diagnóstico é catastrofista, as conclusões revelam-se apocalípticas. Que espaço resta, então, para o optimismo? O espaço para o optimismo da vontade num cenário como o traçado é o da fina linha do horizonte para o qual pretendemos caminhar. Entre nada fazer e tentar alguma coisa, são poucas as opções. E manda a inteligência, mesmo a mais pessimista, que se tente alguma coisa. Os dois fundamentos deste discurso são as duas grandes questões que se colocam à humanidade nos nossos dias: o problema do aquecimento global e a eminência de uma guerra nuclear, que Noam Chomsky considera milagre ainda não ter acontecido.
Sobre o segundo problema, não podia ser mais explícito: «As armas nucleares já estão nas mãos de grupos terroristas: terroristas estatais, com os Estados Unidos na liderança» (p. 96). O que fazer? Organizar as massas no sentido de gerar movimentos de pressão que forcem os governos a verem-se livres desse tipo de armamento como outrora nos libertámos da varíola. O primeiro dos problemas, porventura mais complexo nas soluções a que obriga, aparenta uma irreversibilidade desanimadora. Há muito que pode ser feito, assim queira quem o pode fazer. Sucede que, como bem aponta o filósofo, será sempre muito difícil avançar nesta matéria das alterações climáticas quando na maior potência mundial «40% da população não o considera um problema, pois Cristo regressará nas próximas décadas» (p. 186).
Não são poucas as ocasiões em que nestas entrevistas se sublinha o fundamentalismo religioso da sociedade norte-americana, em muitos aspectos semelhante a outras formas de fundamentalismo religioso, como um dos maiores entraves à razão e, por consequência, ao progresso social. A crença é inimiga da razão, logo o é também do progresso. De resto, este fundamentalismo tem as suas implicações directas na economia e, por consequência, na sangria democrática do sistema político: «Os Estados Unido dizem-se uma democracia, mas já claramente se tornaram numa plutocracia, embora ainda sejam, comparativamente, uma sociedade aberta e livre» (p. 171); «A sociedade americana é, assim, e até um ponto atípico, gerida pelas empresas, com uma comunidade empresarial altamente ciente das classes» (p. 180). Campanhas eleitorais geridas pela indústria publicitária são apenas a máquina ao serviço do sistema.
Publicadas originalmente na revista Truthout, estas entrevistas, cedidas entre 2013 e 2017, servem de indicador acerca do estado do mundo. O efeito devastador das parcerias público-privadas, o aumento das desigualdades, a subversão de velhos conceitos ideológicos naquilo a que Chomsky apelida de “socialismo para os ricos, capitalismo para os pobres”, o monstro terrorista criado em larga medida pelas políticas externas dos EUA — «a invasão do Iraque, o pior crime do século» (p. 62) —, a campanha global de assassinatos por drone (herança do Nobel da Paz Obama), um historial de provocações e agressões no currículo de uma potência mundial que tem «oitocentas bases militares espalhadas pelo mundo», séculos de subjugação e de humilhação dos mais pobres e desfavorecidos, levam a que os EUA sejam hoje considerados uma das maiores ameaças à paz mundial. Não é apenas Chomsky quem o diz, rematando os exemplos que fundamentam o discurso com um axioma inabalável: «andamos todos às aranhas».

Ao ler isto, porventura algumas pessoas julgarão as teses de Noam Chomsky pela apropriação que delas poderá ser feita pelos partidários de um certo antiamericanismo primário. Mas estes primários estão ao mesmo nível daqueles que não conseguem admitir, por exemplo, que as maiores violações dos direitos humanos em território cubano acontecem na Prisão de Guantánamo. Violações dos direitos humanos são sempre violações dos direitos humanos, umas não justificam as outras. Por isso mesmo é tão importante colocar tudo em perspectiva. Aquilo a que neste livro se chama “socialismo realmente existente” e “capitalismo realmente existente” tem pouco que ver com teses definidas em teoria. Pode a ex-URSS servir de exemplo quando discutimos o comunismo? Podem os EUA servir de exemplo quando discutimos o capitalismo? Na prática, andamos todos às aranhas. Entre a teoria e a prática há um fosso que exige da razão um pessimismo que só o fervoroso desejo de um mundo melhor poderá ultrapassar. 

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