A filosofia política de Noam Chomsky (n. 1928) define-se pela
conjugação do anarquismo, enquanto promotor do instinto humano para a
liberdade, com o socialismo libertário, termo que apesar de gasto e muito mal-entendido
continua a servir uma ideia de solidariedade mútua entre os homens. Em síntese,
o seu pensamento reflecte com inabalável constância esse esforço de
aproximação. As entrevistas coligidas em Otimismo e não Desespero (Elsinore,
Novembro de 2017) são exemplo disso mesmo, quer quando tenta responder a
questões genéricas sobre a essência da humanidade, quer quando se concentra nos
problemas da actualidade.
Chomsky é inspirador, como Gramsci o conseguiu ser,
quando a um muito apreciável pessimismo da inteligência contrapõe o vigoroso
optimismo da vontade. Nisso nada acrescenta de especialmente novo. O interesse
renovado por esta fórmula tem hoje outras implicações. Chomsky ultrapassa as
fronteiras de um mero pessimismo metódico, sugerindo cenários de catástrofe no
diagnóstico levado a cabo: «Acredito que a sobrevivência humana decente está em
jogo. As primeiras vítimas serão, como sempre, os mais fracos e vulneráveis»
(p. 87); «A destruição da espécie está ao nível de há 65 milhões de anos, a
Quinta Extinção, que acabou com a era dos dinossauros» (p. 128); «Há boas razões
para crer que já entrámos na Sexta Extinção, um período de destruição de
espécies a uma escala monumental» (p. 148).
Se o diagnóstico é catastrofista, as conclusões revelam-se
apocalípticas. Que espaço resta, então, para o optimismo? O espaço para o
optimismo da vontade num cenário como o traçado é o da fina linha do horizonte
para o qual pretendemos caminhar. Entre nada fazer e tentar alguma coisa, são
poucas as opções. E manda a inteligência, mesmo a mais pessimista, que se tente
alguma coisa. Os dois fundamentos deste discurso são as duas grandes questões
que se colocam à humanidade nos nossos dias: o problema do aquecimento global e
a eminência de uma guerra nuclear, que Noam Chomsky considera milagre ainda não
ter acontecido.
Sobre o segundo problema, não podia ser mais explícito:
«As armas nucleares já estão nas mãos de grupos terroristas: terroristas
estatais, com os Estados Unidos na liderança» (p. 96). O que fazer? Organizar
as massas no sentido de gerar movimentos de pressão que forcem os governos a
verem-se livres desse tipo de armamento como outrora nos libertámos da varíola.
O primeiro dos problemas, porventura mais complexo nas soluções a que obriga, aparenta
uma irreversibilidade desanimadora. Há muito que pode ser feito, assim queira
quem o pode fazer. Sucede que, como bem aponta o filósofo, será sempre muito
difícil avançar nesta matéria das alterações climáticas quando na maior
potência mundial «40% da população não o considera um problema, pois Cristo
regressará nas próximas décadas» (p. 186).
Não são poucas as ocasiões em que nestas entrevistas se
sublinha o fundamentalismo religioso da sociedade norte-americana, em muitos
aspectos semelhante a outras formas de fundamentalismo religioso, como um dos
maiores entraves à razão e, por consequência, ao progresso social. A crença é
inimiga da razão, logo o é também do progresso. De resto, este fundamentalismo tem as suas implicações
directas na economia e, por consequência, na sangria democrática do sistema
político: «Os Estados Unido dizem-se uma democracia, mas já claramente se
tornaram numa plutocracia, embora ainda sejam, comparativamente, uma sociedade
aberta e livre» (p. 171); «A sociedade americana é, assim, e até um ponto
atípico, gerida pelas empresas, com uma comunidade empresarial altamente ciente
das classes» (p. 180). Campanhas eleitorais geridas pela indústria publicitária
são apenas a máquina ao serviço do sistema.
Publicadas originalmente na revista Truthout, estas
entrevistas, cedidas entre 2013 e 2017, servem de indicador acerca do estado do
mundo. O efeito devastador das parcerias público-privadas, o aumento das desigualdades,
a subversão de velhos conceitos ideológicos naquilo a que Chomsky apelida de “socialismo
para os ricos, capitalismo para os pobres”, o monstro terrorista criado em
larga medida pelas políticas externas dos EUA — «a invasão do Iraque, o pior
crime do século» (p. 62) —, a campanha global de assassinatos por drone (herança do
Nobel da Paz Obama), um historial de provocações e agressões no currículo de
uma potência mundial que tem «oitocentas bases militares espalhadas pelo
mundo», séculos de subjugação e de humilhação dos mais pobres e desfavorecidos,
levam a que os EUA sejam hoje considerados uma das maiores ameaças à paz
mundial. Não é apenas Chomsky quem o diz, rematando os exemplos que fundamentam o discurso
com um axioma inabalável: «andamos todos às aranhas».
Ao ler isto, porventura algumas pessoas julgarão as teses
de Noam Chomsky pela apropriação que delas poderá ser feita pelos partidários
de um certo antiamericanismo primário. Mas estes primários estão ao mesmo nível
daqueles que não conseguem admitir, por exemplo, que as maiores violações dos
direitos humanos em território cubano acontecem na Prisão de Guantánamo. Violações
dos direitos humanos são sempre violações dos direitos humanos, umas não
justificam as outras. Por isso mesmo é tão importante colocar tudo em
perspectiva. Aquilo a que neste livro se chama “socialismo realmente existente”
e “capitalismo realmente existente” tem pouco que ver com teses definidas em
teoria. Pode a ex-URSS servir de exemplo quando discutimos o comunismo? Podem os EUA servir de exemplo quando discutimos o capitalismo? Na prática, andamos todos às aranhas. Entre a teoria e a prática há um
fosso que exige da razão um pessimismo que só o fervoroso desejo de um mundo
melhor poderá ultrapassar.
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