Emigrada em Oxford, com doutoramento em Estudos
Clássicos, Tatiana Faia (n. 1986) é autora de uma poesia que deve tanto à
erudição classicista como à modernidade. Um Quarto em Atenas (Tinta-da-China,
Janeiro de 2018), título à laia de arte poética, vem confirmar o que os
livros anteriores, Lugano (Artefacto, 2011) e teatro de rua (do lado esquerdo,
2013), haviam indiciado quanto à forma como tão bem se articulam nestes poemas
experiência vivida e experiência literária. Nos agradecimentos finais,
encontramos uma frase que talvez ajude a perceber melhor o propósito dessa
conjugação: «Nunca se sabe muito bem onde um poema começa, a barreira entre
pensar sobre literatura e escrever é sem dúvida uma ténue parede através da
qual se pode conversar» (p. 149). Tal incerteza quanto à origem do poema pode
encontrar resposta na multiplicidade de referências que coloram os versos deste
livro, e que vão tanto dos clássicos como aos diálogos de séries televisivas,
passam por composições musicais, obras de arte, filmes, lugares, outros poetas.
É com naturalidade que Tatiana Faia se refere à
«venerável lápide de william blake» logo na estrofe inicial do primeiro poema,
lembra o «thomas bernhard empregado de loja», frequenta livrarias de arte onde
folheia «a bíblia ilustrada de chagall», lê «um estudioso de munch», observa «o
céu estrelado / nas costas de eugène boch no quadro de van gogh», para acabar a
lembrar «que foi adrienne rich quem escreveu / que eu vivo num país onde os
poetas não são presos / por serem poetas / são presos por serem negros, mulheres,
pobres» (p. 24). Kafka lido numa biblioteca, a Comédia de Dante, a «imitação
/ de derek jarman / do baco de caravaggio», «as cenas finais do paciente
inglês», «bell hooks / e biografias de muhammad ali», «a lei de tchekhov», Anne
Frank, «composições / que dvorak escreveu para divertimento dos filhos», evocações
de Jorge de Sena, Ruy Belo, António José Forte, Daniel Faria, o diário de
Pavese, um poema de Andrew McMillan, «a voz de ellis de vries», etc, etc, etc,
etc, são interlocutores no decorrer dos dias. E é enquanto tal que vêm à tona
nos versos, quase sempre ao jeito de uma comparação ou associação a situações vividas,
actuais, fruto de uma experiência quotidiana indissociável da vivência literária.
Seria completamente errado julgar que esta desmesura
referencial afasta os poemas da vida, reduzindo-os ao exercício da citação para
mero deleite intelectual. Antes pelo contrário, da janela do quarto em Atenas
observa-se a civilização ocidental e faz-se do poema anotação, testemunho claro
de um cenário exterior filtrado pelo declarado cansaço da testemunha.
Relativamente longos, por vezes em sequências de 2, 4 ou 5 estâncias, em alguns
casos datados, estes poemas, na sua vertente narrativa, como que registam o
mundo pelos olhos de uma autora dividida entre Oxford e Atenas, com escala em
Lisboa. Poemas tais como O Retorno, 2016, Literatura Para Falcões ou O Grande
Fardo de Palha do Poeta Comprometido, são especialmente incisivos na forma como
abordam a contemporaneidade literária, remetendo, a espaços, para o discurso verrinoso
de um Jorge de Sena (de resto, diversas vezes aludido ao longo do livro). Mas
não me parece que sejam estes os momentos mais cativantes de Um Quarto em
Atenas.
Muito mais empolgante é o modo como o sujeito poético
surge a partir de uma espécie de fissura instaurada entre observador e mundo
observado. A distância proporcionada pela ironia ajuda a que o retrato seja
certeiro e impiedoso: «avanças na última estação em direcção / a um pouco mais
de nada / e há homens sentados nos bancos / de fatos e chapéus de chuva / eles
entram e saem são rasos e incólumes / não amas neles a rotina medíocre / e sem
história do conforto o sossego acomodado / os jantares pacientemente contados /
durante as pausas nos cafés lembras-te / de que o contrário de estar vivo é
isto mesmo» (p. 8). Ou seja, a rotina, o conforto, a acomodação, decalcam a
morte ao longo dos dias. Asseverações deste tipo servem um olhar que não se
furta à consideração de tipo político: «entendi a vergonha de pertencer a uma
europa / que nunca vai ser nova o bastante / e à qual pode nem ser dado / vir a
ser nova o suficiente» (p. 16). A velha Europa, assim desmontada, é lugar de
saturações e de cansaços, impele a um questionamento sobre a sua condição de
berço civilizacional. Que civilização? A que cultiva ilusões e distracções para
disfarçar a insatisfação geral.
No poema intitulado Ambros Aldewarth, personagem
desenvolvida por W. G. Sebald no livro “Os Emigrantes”, fica explícito o
compromisso desta poesia para com o seu tempo. O poema segue o livro, mas não
se fecha nele. Serve-se dele para questionar as implicações da memória na
construção do tempo: «a memória às vezes atinge-te / como uma permanência da
estupidez / da letargia / a cabeça pesada e confusa não como quem / se concentra
para olhar para trás no tempo / mas como a vertigem entrevista / do topo de um
arranha-céus / com o olhar ao nível das nuvens / e o nó obscuro do tempo» (p.
99). Creio existir entra a poesia de Tatiana Faia e o seu tempo um compromisso
que não situa nem diminui o poema, antes lhe confere um carácter testemunhal
capaz de inquietar o leitor e de algum modo desconcertar eventuais ideias
feitas que possamos ter acerca da relação entre literatura e vida. O melhor de
Um Quarto em Atenas é a vista que oferece, as sobras de uma civilização em
imagem panorâmica e os efeitos colaterais de um vazio na figura do poeta.
3 comentários:
Poemas e poesia que vivem de referências e implicitamente exigem que o leitor as tenha, não vale um caracol. Serve apenas para que os pares e alguns impares do Autor lhe façam uma veniazinha.
Poemas e poesia que vivem de referências, e delas se alimentam, sao bastante entediantes. Servem sibretudo para que os pares do Autor, e alguns ímpares, lhe facam façam uma veniazinha.
Caro Pedro Duarte,
se entende que um texto viver de referências não é o mesmo que se alimentar delas, a qual destes dois casos se refere?
Por outro lado, se pensa que é exactamente a mesma coisa, como poderia viver um texto sem, para começar, referência à língua em que é escrito? Fingindo-se desconhecer o que significa pão, noite, sirene, gorro, lua, tripas, macaco? Ou até mesmo blandícia, foda-se, Francisco de Holanda, ontologia, lucinante, cagada, tótil, MacGyver, senescente, ou o que quer que seja aquilo com que a autora está familiarizada? Está bem, poderia sobreviver como glossolalia. Então e sem referência aos caracteres? Perfeitamente! Mas ainda enquanto texto ou já como desenho? A resposta é: não interessa.
O que interessa é definir que tipo de referência entedia as poesias. Subentendendo que se trata de uma objecção a referências eruditas, elitistas (para quem?), de alta cultura, etc. (que de resto, neste caso, não gozam de exclusividade), o que sugere à autora? Disfarçar o melhor que possa que leu isto, viu aquilo e ouviu aquela? Que camufle os seus instrumentos naturais e cubra de folhas as pegadas? Isso é mentir, omitir ou, na melhor das hipóteses, praticar uma prova de obstáculos completamente artificial.
Se esta suposição estiver errada, só sobra a necessidade de aprovação dos pares, que conduz a esta estranha noção de poesia: jogo para impressionar uns e entediar todos.
Não é?
Cumprimentos
Enviar um comentário