sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

UM QUARTO EM ATENAS

Emigrada em Oxford, com doutoramento em Estudos Clássicos, Tatiana Faia (n. 1986) é autora de uma poesia que deve tanto à erudição classicista como à modernidade. Um Quarto em Atenas (Tinta-da-China, Janeiro de 2018), título à laia de arte poética, vem confirmar o que os livros anteriores, Lugano (Artefacto, 2011) e teatro de rua (do lado esquerdo, 2013), haviam indiciado quanto à forma como tão bem se articulam nestes poemas experiência vivida e experiência literária. Nos agradecimentos finais, encontramos uma frase que talvez ajude a perceber melhor o propósito dessa conjugação: «Nunca se sabe muito bem onde um poema começa, a barreira entre pensar sobre literatura e escrever é sem dúvida uma ténue parede através da qual se pode conversar» (p. 149). Tal incerteza quanto à origem do poema pode encontrar resposta na multiplicidade de referências que coloram os versos deste livro, e que vão tanto dos clássicos como aos diálogos de séries televisivas, passam por composições musicais, obras de arte, filmes, lugares, outros poetas.
É com naturalidade que Tatiana Faia se refere à «venerável lápide de william blake» logo na estrofe inicial do primeiro poema, lembra o «thomas bernhard empregado de loja», frequenta livrarias de arte onde folheia «a bíblia ilustrada de chagall», lê «um estudioso de munch», observa «o céu estrelado / nas costas de eugène boch no quadro de van gogh», para acabar a lembrar «que foi adrienne rich quem escreveu / que eu vivo num país onde os poetas não são presos / por serem poetas / são presos por serem negros, mulheres, pobres» (p. 24). Kafka lido numa biblioteca, a Comédia de Dante, a «imitação / de derek jarman / do baco de caravaggio», «as cenas finais do paciente inglês», «bell hooks / e biografias de muhammad ali», «a lei de tchekhov», Anne Frank, «composições / que dvorak escreveu para divertimento dos filhos», evocações de Jorge de Sena, Ruy Belo, António José Forte, Daniel Faria, o diário de Pavese, um poema de Andrew McMillan, «a voz de ellis de vries», etc, etc, etc, etc, são interlocutores no decorrer dos dias. E é enquanto tal que vêm à tona nos versos, quase sempre ao jeito de uma comparação ou associação a situações vividas, actuais, fruto de uma experiência quotidiana indissociável da vivência literária.
Seria completamente errado julgar que esta desmesura referencial afasta os poemas da vida, reduzindo-os ao exercício da citação para mero deleite intelectual. Antes pelo contrário, da janela do quarto em Atenas observa-se a civilização ocidental e faz-se do poema anotação, testemunho claro de um cenário exterior filtrado pelo declarado cansaço da testemunha. Relativamente longos, por vezes em sequências de 2, 4 ou 5 estâncias, em alguns casos datados, estes poemas, na sua vertente narrativa, como que registam o mundo pelos olhos de uma autora dividida entre Oxford e Atenas, com escala em Lisboa. Poemas tais como O Retorno, 2016, Literatura Para Falcões ou O Grande Fardo de Palha do Poeta Comprometido, são especialmente incisivos na forma como abordam a contemporaneidade literária, remetendo, a espaços, para o discurso verrinoso de um Jorge de Sena (de resto, diversas vezes aludido ao longo do livro). Mas não me parece que sejam estes os momentos mais cativantes de Um Quarto em Atenas.
Muito mais empolgante é o modo como o sujeito poético surge a partir de uma espécie de fissura instaurada entre observador e mundo observado. A distância proporcionada pela ironia ajuda a que o retrato seja certeiro e impiedoso: «avanças na última estação em direcção / a um pouco mais de nada / e há homens sentados nos bancos / de fatos e chapéus de chuva / eles entram e saem são rasos e incólumes / não amas neles a rotina medíocre / e sem história do conforto o sossego acomodado / os jantares pacientemente contados / durante as pausas nos cafés lembras-te / de que o contrário de estar vivo é isto mesmo» (p. 8). Ou seja, a rotina, o conforto, a acomodação, decalcam a morte ao longo dos dias. Asseverações deste tipo servem um olhar que não se furta à consideração de tipo político: «entendi a vergonha de pertencer a uma europa / que nunca vai ser nova o bastante / e à qual pode nem ser dado / vir a ser nova o suficiente» (p. 16). A velha Europa, assim desmontada, é lugar de saturações e de cansaços, impele a um questionamento sobre a sua condição de berço civilizacional. Que civilização? A que cultiva ilusões e distracções para disfarçar a insatisfação geral.

No poema intitulado Ambros Aldewarth, personagem desenvolvida por W. G. Sebald no livro “Os Emigrantes”, fica explícito o compromisso desta poesia para com o seu tempo. O poema segue o livro, mas não se fecha nele. Serve-se dele para questionar as implicações da memória na construção do tempo: «a memória às vezes atinge-te / como uma permanência da estupidez / da letargia / a cabeça pesada e confusa não como quem / se concentra para olhar para trás no tempo / mas como a vertigem entrevista / do topo de um arranha-céus / com o olhar ao nível das nuvens / e o nó obscuro do tempo» (p. 99). Creio existir entra a poesia de Tatiana Faia e o seu tempo um compromisso que não situa nem diminui o poema, antes lhe confere um carácter testemunhal capaz de inquietar o leitor e de algum modo desconcertar eventuais ideias feitas que possamos ter acerca da relação entre literatura e vida. O melhor de Um Quarto em Atenas é a vista que oferece, as sobras de uma civilização em imagem panorâmica e os efeitos colaterais de um vazio na figura do poeta. 

3 comentários:

Pedro Duarte disse...

Poemas e poesia que vivem de referências e implicitamente exigem que o leitor as tenha, não vale um caracol. Serve apenas para que os pares e alguns impares do Autor lhe façam uma veniazinha.

Pedro Duarte disse...

Poemas e poesia que vivem de referências, e delas se alimentam, sao bastante entediantes. Servem sibretudo para que os pares do Autor, e alguns ímpares, lhe facam façam uma veniazinha.

Gonçalo Fernandes disse...

Caro Pedro Duarte,
se entende que um texto viver de referências não é o mesmo que se alimentar delas, a qual destes dois casos se refere?
Por outro lado, se pensa que é exactamente a mesma coisa, como poderia viver um texto sem, para começar, referência à língua em que é escrito? Fingindo-se desconhecer o que significa pão, noite, sirene, gorro, lua, tripas, macaco? Ou até mesmo blandícia, foda-se, Francisco de Holanda, ontologia, lucinante, cagada, tótil, MacGyver, senescente, ou o que quer que seja aquilo com que a autora está familiarizada? Está bem, poderia sobreviver como glossolalia. Então e sem referência aos caracteres? Perfeitamente! Mas ainda enquanto texto ou já como desenho? A resposta é: não interessa.
O que interessa é definir que tipo de referência entedia as poesias. Subentendendo que se trata de uma objecção a referências eruditas, elitistas (para quem?), de alta cultura, etc. (que de resto, neste caso, não gozam de exclusividade), o que sugere à autora? Disfarçar o melhor que possa que leu isto, viu aquilo e ouviu aquela? Que camufle os seus instrumentos naturais e cubra de folhas as pegadas? Isso é mentir, omitir ou, na melhor das hipóteses, praticar uma prova de obstáculos completamente artificial.
Se esta suposição estiver errada, só sobra a necessidade de aprovação dos pares, que conduz a esta estranha noção de poesia: jogo para impressionar uns e entediar todos.
Não é?
Cumprimentos