sábado, 3 de março de 2018

O TOM DIVERTIDO DA PASSAGEM


Nos últimos um ou dois anos, o meu editor, se assim se lhe pode chamar, tem-me escrito de vez em quando a perguntar que destino deve dar aos exemplares de Uma Semana nos Rios Concord e Merrimack ainda disponíveis, tendo acabado por dar a entender que precisava do espaço que estavam a ocupar na sua cave. Assim, mandei-os vir, tendo chegado hoje por correio expresso, enchendo todo o carro do homem: 706 exemplares de uma edição de 1000 que comprei à Munroe há quatro anos, que tenho vindo a pagar desde então e que ainda não acabei de pagar. A mercadoria foi-me finalmente enviada e tenho agora a oportunidade de examinar a minha compra. É qualquer coisa de mais substancial do que a fama, como as minhas costas podem testemunhar, que a subiram dois lanços de escadas para um local semelhante àquele em que teve origem. Dos restantes duzentos e noventa e tal, setenta e cinco foram oferecidos e o resto vendido. Tenho agora uma biblioteca de perto de novecentos volumes, dos quais mais de setecentos são da minha autoria. [28 de Outubro de 1853]

Diário de Henry David Thoreau, citado por H. Daniel Peck na introdução a Uma Semana nos Rios Concord e Merrimack, trad. Luís Leitão, Antígona, Janeiro de 2018, p. 7.

4 comentários:

Carlos Natálio disse...

Caraças deve ter sido desmoralizador...

hmbf disse...

Comentário de H. Daniel Peck: «O tom divertido desta passagem do diário encobre a decepção que Thoreau deve ter sentido com o fracasso de "Uma Semana", e dele próprio, no mercado literário. No ano da sua publicação, 1849, trabalhara já quase uma década nesta obra, a par de outros projectos, e esperava que ela fosse inaugurar a sua carreira de grande autor americano».

Comentário próprio: e inaugurou, Thoreau é que não deu por isso. Mas alguém dos duzentos e noventa e tal terá dado.

Carlos Natálio disse...

Sim, estas coisas são sempre meio invisíveis e imprevisíveis. Mas também penso que se fosse hoje, em que a ânsia do reconhecimento imediato está sempre à flor da pele, a dor ainda teria sido maior. Especulações, enfim. Mas terá tido a sua graça alguém desavisado entrar na biblioteca do Thoreau e ver dezenas de exemplares do próprio. Uma biblioteca-espelho.

hmbf disse...

Com o Eliot aconteceu algo semelhante. Os tempos hoje são outros, o mercado dos livros é outro e nele os próprios autores transformaram-se em mercadoria. As excepções mantêm-se. Mas como no futuro ninguém lerá, as excepções ficarão aquém da grandeza merecida.