TELHADOS LONGÍNQUOS
23.
Do cimo dos telhados vejo
coisas atiradas sobre o mundo:
um livro a arder num incêndio
valente. Muita merda a passar
sob as pontes. (Alguma
é a poesia que se pode).
Uma bicicleta ergue-se entre
o escuro e os meus dentes —
é a musa sem metafísica, e leva
o mundo no guiador. (Agora é bem
preciso arrojo para se ser poeta
sem a almofada do divino).
Olho para o guardador de rebanhos,
que não sabe peva de poesia.
Enfrentando o ofício, cada palavra
sua tem um sentido preciso
que faz mover essa mancha viva.
(Eu sei, posso estar a pedir
demasiado a quem não prescinde
da alta cintilação que revela
o abismal, mas não há como
regressar à grandiloquência
depois da reconhecida justeza
das palavras do pastor).
O rebanho marcha em tenaz harmonia.
Senhor, eu confio nas vossas obras,
mesmo quando decidistes riscar
do mapa cidades inteiras. (Puta
para nero que apenas incendiou roma).
Como fazer justiça aos poetas do meu
tempo, senhor, se o público louvor
vem na folha onde embrulho o magro
jaquinzinho logrado num duelo traiçoeiro?
Por muito que queira ser serviçal
vosso nesta baixa esterqueira,
senhor, o guardador de rebanhos
tomou-me a dianteira e move-se
levando a firmeza na sua esteira.
E é rapinando, senhor, que construo
minha débil melodia. E, acabada
a obra, um piscar de olho vosso
seria suficiente para causar
grandes efeitos no público
palco do entardecer.
O quê?! Dizei-me que a hora
é de desastres? Então retiro-me,
senhor, e vou aprender com
os rebanhos as razões do justo
caminhar, que é deveras a causa
desta invisível harmonia.
José Luiz Tavares (n. 10 de Junho de 1967, Chão Bom, concelho do Tarrafal, ilha de Santiago, Cabo Verde), in Rua Antes do Céu, Abysmo / Rosa de Porcelana, Outubro de 2017, pp. 44-45.
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