Julgo que foi Hazlitt quem disse que, superior a esta cidade de água, só mesmo uma cidade construída no ar. Era uma ideia calviniana, e quem sabe se, na esteira das viagens espaciais, não virá ainda a ser posta em prática. Enquanto isso não acontece, talvez o melhor testemunho deste século, a par do desembarque na Lua, seja o ter deixado intacta esta cidade, o tê-la deixado em paz. Eu, pessoalmente, desaconselharia até mesmo as intervenções mais benignas. É certo que os festivais de cinema e as feiras do livro condizem com o tremular da superfície dos canais, com os seus rabiscos floreados, atentamente lidos pelo sirocco. E é certo que converter este lugar numa capital da investigação científica seria uma opção agradável, especialmente se levarmos em conta as prováveis vantagens da dieta local, rica em fósforo, para qualquer tipo de esforço mental. Poderia usar-se o mesmo isco para transferir de Bruxelas para aqui o quartel-general da CEE, e de Estrasburgo o Parlamento Europeu. E é certo que seria melhor solução ainda atribuir a esta cidade e a uma parte dos seus arredores o estatuto de reserva nacional. Eu diria, porém, que a ideia de converter Veneza num museu é tão absurda como a ânsia de a revitalizar com sangue novo. Para começar, aquilo a que se chama sangue novo não passa nunca, no fundo, de velha urina. E, em segundo lugar, esta cidade não se presta a ser um museu, sendo ela própria uma obra de arte, a maior obra-prima que a nossa espécie criou. Não se renova um quadro, e menos ainda uma estátua. Há que deixá-los em paz, guardá-los dos vândalos — de cujas hordas talvez nós próprios façamos parte.
Joseph Brodsky, in Marca de Água — Sobre Veneza, trad. Ana Luísa Faria, Relógio D'Água, Janeiro de 2018, pp. 90-91.
3 comentários:
Comecei hoje a ler "Paisagem com Inundação". Estou a gostar.
Também tenho, o da Cotovia.
Exacto.
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