Morto e enterrado o dia mundial da poesia, vamos a ela.
Três vozes femininas, portuguesas, publicadas por uma mesma editora no espaço
de dois meses. Na verdade, Sarah Adamopoulos (n. 1964), de origem grega, nasceu
em Roterdão. Por cá, foi jornalista, tradutora, autora de livros com
características e propósitos dissemelhantes.
Auguste Comte (n. 1789 – m. 1957),
pai do positivismo, surge como interlocutor no poema A Única Palavra (Douda
Correria, Outubro de 2017). Comte, convém recordar, foi um anti-individualista
interessado na reflexão da sociedade de um ponto de vista científico. No
entanto, a fase final do seu percurso gerou polémica na sequência de algumas
opções críticas. A divisão dos entusiastas do positivismo teve como origem uma
ideia de Humanidade mais devedora da metafísica do que da sociologia. A noção
de Grand-Être, a Humanidade entendida enquanto todo, levou Comte a enveredar
por uma espécie de religião da Humanidade com seus dogmas respectivos, decalcados amiúde do catolicismo. É verdade que nada disto é
indispensável à leitura de A Única Palavra, embora tenda a tornar mais claro «o
saber metafísico / do mistério» introduzido pelo poema. O seu objecto é
poético, e ainda que possamos entendê-lo como aposto à ciência e até a uma
concepção religiosa da ciência, ele não deixa de manifestar fé na razão que
sustenta a palavra poética: o mistério. Em poesia, os conceitos (con)fundem-se,
as fronteiras transpõem-se, os termos adquirem uma plasticidade e um extensão inconveniente
ao discurso científico. Deixa de ter lógica a separação dicotómica do religioso
(que liga, unifica, reaproxima) e do científico (que separa, distingue, individualiza).
Sarah Adamopoulos recupera, deste modo, o estatuto epifânico do poema numa
época em que a poesia parece ter abdicado da sua raiz filosófica: «já não sei o
que é mais triste: / se os teus herdeiros, Auguste, / se eu ali a afundar-me /
no lodo centrípeto, / se o muro / (casulo, cegueira, vertigem, doença / —
hesito) / que nos separa». Das companhias declaradas no final, a mais óbvia é o
poema-sequência A Terceira Miséria (Relógio D’Água, Fevereiro de 2012), de
Hélia Correia (n. 1949), por também aí se vislumbrar uma acutilante crítica da
actualidade face à degenerescência de certo sentido poético do mundo. Observado de
perto, no seu habitat sociológico natural, as ruas, o Outro surge esvaziado da
sua ligação ao Grand-Être: «É preciso descriar essa tropa / que vive
entrincheirada na palavra / eu». Comte é não apenas um interlocutor passivo,
tipo confessor, mas também princípio a partir do qual o poema se desenrola
reflexivamente, assumindo o mistério, a magia, a dúvida, o mundo de possibilidades
que determina «a natureza da palavra». Ponham os olhos neste poema. Seria
tremendamente injusto que passasse despercebido.
O mais extenso dos três livros agora convocados é de
Catarina Costa (n. 1985), que já havia publicado Chiaroscuro (Julho de 2016) na
Douda Correria. Analema (Novembro de 2017) reúne três conjuntos de poemas:
Primeiras Travessias (14 poemas), Cristalização: A Casa (16 poemas), Dos
Despojos (20 poemas). Embora autónomos, os poemas de Analema mantêm entre si uma
unidade temática e de tom por vezes desdobrada em breves sequências. No
conjunto inicial, que me parece o mais irregular dos três, percebemos a
necessidade de um afastamento materializado na dissimulação do sujeito poético
em vários pronomes pessoais. O eu e o tu, mais raramente um nós, um eles,
intercalam-se em fragmentos intimistas que remetem para um passado revisitado
«com um toque / de melancolia à superfície». Encontra-se nesse passado a origem
do pathos que os conjuntos subsequentes radicalizam. No segundo, a aventura
adiada surge traída pela domesticação do impulso. A esta domesticação
corresponde a cristalização do ser. A partida (fuga? libertação?) não chega a
consumar-se, a solidão apodera-se daquele que permanece entre os quais já não
se revê. Poemas como A Sala de Jantar, Uma Casa que Não é Tua, A Incompreensão
do Desastre, fazem da família o núcleo celular de um sentimento de
desterritorialização. A casa é «território estrangeiro», o sujeito poético
metamorfoseia-se em coisa anómala, solitária, isolada, incompreendida, afastada
dos outros por nele crescer um aglutinador sentimento de desagregação. Não por
acaso, Kafka é citado a determinada altura num poema em que o fantasma do
suicídio, colocado como possibilidade, é ultrapassado pela força reveladora do
acidente. Se a morte não se teme, «o que temes é a perda do que não é da sua
natureza / perfazer-se». Pergunto-me se tal perda não ocultará um derradeiro
sinal de esperança, se nela a fragilidade do sujeito não engendra forças que o
mantêm de pé. O problema do doméstico na poesia de Catarina Costa não se esgota
no tédio da vida quotidiana, é colocado nas fundações de uma dor silenciosa que
lança o sujeito em estados de desamparo e de absoluta solidão. A observação
dedicada ao outro, aos adereços, à quotidianiedade, remete invariavelmente para
esse si mesmo ferido de melancolia, colocando-o numa desconfortável situação de
reconhecimento: «vi a velha na fila do supermercado» (…) «e então senti-me como
ela, uma figura patética».
Por fim, Catarina Santiago Costa. Dela saíram na Douda
Correria, em 2016, os livros Estufa e Tártaro. Como não há duas sem três, aí
temos Filha Febril (Novembro de 2017). Podemos falar em três partes informais
neste livro, sendo que em todas elas assistimos, de uma forma mais ou menos
evidente, ao diálogo da morte com a vida. De índole narrativa, a primeira parte
situa-nos num tempo definido pela perda. Neste caso, da mãe. Ao contrário do
que sucede em muitos outros livros dedicados ao tema, neste não é a memória o
que mais se impõe, nem a morte enquanto questão ontológica. A perda da mãe inaugura
no início do livro um momento alucinatório com repercussões demenciais.
Opera-se um processo de transmutação que faz da filha o corpo onde se aloja
agora o espólio materno: «O lobo comeu o colibri. / Agora, quando abre as
mandíbulas, / o canto da avezinha escapa-se-lhe / — o colibri é o lobo / e o lobo
o colibri. // Também o colibri pode comer o lobo / porém, ao abrir o bico, /
morrerá com o uivo». Em diálogo com a “peça” Pierrot e Arlequim, de José de
Almada Negreiros, surge sob a forma de interlúdio um tríptico que liga a
primeira à terceira partes deste livro. É na mais extensa das duas que vem à
tona uma fúria característica da poesia de Catarina Santiago Costa. Outrora
filha aquela que se encontra agora no papel de mãe. O envio é pungente: «Filha
querida, / urge que percebas que / só fujo de mim / — deste eu esfacelado e químico
/ deste eu desfigurado, delirante moderado / deste eu trágico / ossos
pneumáticos esvaziados / olhos queimados / sexo a um tempo sobrepovoado e
deserto / fome e sede cretáceos». O movimento é o das coisas vivas, erguidas da
morte como herdeiras de uma perda a que cabe dar continuidade. Esse o absurdo
da existência a que geralmente se atribui o nome de descendência, mesmo quando
se nega à família — «leviatã áspero e mesquinho» — o valor conferido aos amigos:
«A minha linhagem é a dos amigos, / espécie marsupial atípica com cronologia
aleatória / solitários com encontros marcados / — gestei-os e eles a mim. /
Temos sangue dourado e isso / nem os deuses». Ao questionar o conceito atávico
de família, fundador de modelos sociais mais preocupados em assegurar a
manutenção dos seus alicerces do que em garantir a liberdade e a felicidade dos
indivíduos, Filha Febril traz para a poesia portuguesa uma nova abordagem do
problema da maternidade, expurgado da sentimentalidade e das emoções que
geralmente o configuram. Desassossegado, inquieto, eventualmente cruel: «Nada a
fazer: / somos omnívoros / somos necrófagos / mas não temos de ser / sacanas nem mesquinhos
/ —
diz-te este fantasma voraz / que já foi filha».
2 comentários:
Obrigada, Henrique Fialho. É tão bom quando um leitor atento escreve sobre o que escrevemos. P.S. - é o *sabor* metafísico e não o saber, algo a um tempo mais palpável e misterioso.
Agradecido estou eu, pela leitura que o poema me proporcionou. Saúde,
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