Na segunda badana de Marca de Água — Sobre Veneza
(Relógio D’Água, Janeiro de 2018) diz-se que Joseph Brodsky (n. 1940 – m. 1996)
foi o escritor mais novo a receber o Prémio Nobel da Literatura, em 1987. Se
não me falham as contas, Albert Camus (n. 1913 – m. 1960) ainda não contava 44
primaveras quando o recebeu, em 1957. Brodsky tinha 47 anos. Não é que seja
relevante, mas o seu a seu dono.
Natural de Leninegrado, actual São
Petersburgo, Iosif Aleksandrovich Brodsky nasceu no seio de uma família judaica
quando os judeus eram marginalizados na ex-URSS. A pobreza marcou a infância, assim como uma
sensação de desenraizamento que irá acompanhá-lo para a vida. Aluno
problemático, largou a escola para ingressar no mundo do trabalho como operador
de máquinas, primeiro, e assistente de autópsias, depois. Ao mesmo tempo, nunca
perdeu interesse pela educação. Aprendeu polaco e inglês, estudou filosofia,
mitologia, poesia. Começou a escrever poemas com 15 anos, fazendo-os circular
em publicações marginais. Cinco anos depois conheceu Anna Akhmatova (n. 1889 –
m. 1966), cuja influência na sua afirmação é inquestionável. Em 1964, depois de haver sido denunciado como autor de poemas pornográficos e anti-soviéticos, foi
acusado de parasitismo social: “pseudo-poeta com calças de veludo”. Condenado a
cinco anos de trabalhos forçados, viu a sentença reduzida após protestos de
Akhmatova, Sartre, Yevgeny Yevtushenko. Acabou por se tornar num símbolo da
resistência contra o totalitarismo soviético. Em 1972, foi finalmente forçado a
sair do país. Nunca mais regressou. Viveu na Áustria, onde conheceu W. H. Auden
(n. 1907 – m. 1973), outra figura determinante no seu percurso. A mudança para
os EUA deu-se rapidamente, com trabalho garantido na Universidade do Michigan. Aí
deu início a uma proeminente carreira académica. Aquando da aceitação do Nobel,
questionado sobre a sua nacionalidade, respondeu: “Sou judeu, poeta russo, ensaísta
inglês e, claro, cidadão americano”.
Veneziano nunca chegou a ser, mas podia.
Frequentou a cidade de Veneza durante 17 anos, colhendo da experiência o ensaio que agora
integra a colecção Viagens da editora Relógio D’Água. Datado de 1989, Marca de
Água veio a lume em 1992. O interesse de Brodsky pela cidade não é o que comummente
motiva um viajante. O trabalho, revela, foi em regra o que o levou a Veneza.
Nem “intuitos românticos”, nem uma “lua-de-mel” ou “um divórcio”. Trabalho. E é
com este distanciamento, mas confessada admiração, que se dirige à cidade:
«Sendo as coisas o que são, esta cidade é a menina dos nossos olhos. Depois
dela, tudo nos desilude» (p. 87). A prosa de Brodsky está, no entanto, repleta
de armadilhas. Aqui irónica, acolá sarcástica, rejeita a
superficialidade da mera descrição, preferindo incursões reflexivas orientadas
por experiências pessoais e sensações intimistas. Logo a abrir, «o cheiro a
algas geladas» (p. 10) é sinónimo de felicidade por nele se reconhecer um sinal
de identificação. Não com uma infância infeliz nas margens do Báltico, mas com
o «ichthus que originou esta civilização» (p. 11).
Não conseguimos encontrar na
prosa de Brodsky um lugar-comum, uma sentença previsível, tudo nela surge de
algum modo inesperadamente, com a leveza de quem conta uma história repleta de emoções aqui e acolá pontuadas pelo riso. Politicamente céptico, desconfiado da humanidade em geral e
dos artistas em particular, frio na exposição das relações humanas, observa a
cidade não como um dos seus habitantes, muito menos como um turista
esporádico, observa-a para lá do presente imediato, reflectindo-a como nas
águas se reflecte um rosto. Na verdade, este livro pode ser lido como um
pequeno ensaio acerca da reflexão. «Há algo de primevo nas viagens sobre a
água», diz-nos. E acrescenta: «A água perturba o princípio da horizontalidade,
em especial à noite, quando a sua superfície se assemelha à da calçada» (p.
17).
Elemento essencial, a água é neste caso a terra sobre a qual o pensamento firma
a caminhada. Metáfora do tempo — «a água é a imagem do tempo» (p. 38) —,
ela é igualmente uma metonímia do reflexo: «esta água reflectiu todos quantos
viveram, para já não falar dos que apenas estiveram de passagem, nesta cidade,
todos quantos alguma vez caminharam ou patinharam nas suas ruas como agora
fazemos» (p. 77). Este elemento próprio de Veneza, a sua característica principal,
sobressai entre os demais como uma espécie de assinatura identitária, carimbo que
o olho do observador identifica enquanto centro do mundo: «Se o mundo fosse
considerado como um género literário, o seu principal recurso estilístico seria
sem dúvida a água» (p. 97). O amor a este lugar é, pois, aquele que se deve às
reflexões que nos transportam à origem, reconfortando-nos com uma ideia de
beleza e pureza que talvez seja meramente ideal, mas sem dúvida alumia o
futuro. Não necessariamente o da cidade.
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