sábado, 24 de março de 2018

MORRER DEVAGAR


No ano de 1979, José Martins Garcia (n. 1941 – m. 2002) já havia publicado o ensaio Linguagem e Criação (Assírio & Alvim, 1973), com que se estreou, o livro de poesia Feldegato Cantabile (Paisagem, 1973), as narrativas de Katafaraum É Uma Nação (Assírio & Alvim, 1974). Para trás tinha também ficado a colaboração com Fernando Ribeiro de Mello nas Edições Afrodite, onde publicou os romances Lugar de Massacre (1975) e A Fome (1977), assim como os contos de Alecrim, Alecrim aos Molhos (1974) e Revolucionários e Querubins (1977). Morrer Devagar (Arcáfia, 1979) surgiu numa fase de plena maturidade criativa, no ano em que partiu para os EUA na categoria de professor visitante da Brown University (Providence). Um visiting scholarship, como agora se diz até de quem nunca o foi.
Os contos de Morrer Devagar (Companhia das Ilhas, Dezembro de 2017) abarcam um largo período, facilmente identificável na biografia do autor: raízes açorianas, experiência militar na Guiné, emigração. Talvez seja esta a marca mais forte destes contos, por neles sobressair a condição de exilado que terá tanto que ver com certa condição de isolamento geográfico e pessoal como com a relação de desconforto mantida com o seu tempo no seu mundo. A maior parte destes 22 contos (o conto intitulado Justiça, da página 139, escapou ao índice) remete para a paisagem insular açoriana. Nascido no Pico, Martins Garcia jamais prescindiu desse legado biográfico que tanta matéria vivida ofereceu à matéria literária. Mesmo quando resvala para um surrealismo aparentemente sem território (leia-se O Vómito), ele deixa vir à tona as componentes de uma mitologia localizável na tradição de um Portugal rural entregue a si mesmo, isto é, aos costumes, às lendas, aos hábitos, às crenças, aos estereótipos, aos preconceitos que dão forma e deformam a vida comunitária.
No centro dessa amálgama social, o poder determinante da Igreja e o poder subserviente do Estado. Subserviente, claro está, à Igreja: «Deus fizera o homem à sua imagem e semelhança, mas isso fora no começo do mundo. Com o andar dos tempos, a degradação acentuara-se tanto que, da primitiva semelhança, nada restava ao macaco moderno» (p. 178). É, portanto, um Portugal atrasado e miserável aquele que se nos apresenta, retrógrado nos valores e, por natural consequência, nos hábitos. O peso da tradição sufoca a liberdade, os doutores manifestam um saudosismo que a ralé desconhece, por nela não haver saudades senão de um futuro capaz de ser sonhado quando o destino não o barra fatalmente: «Éramos cruéis e pobres, duma pobreza cruel, e mentirosos» (p. 27). Nas memórias da infância confundem-se o abjecto e o picaresco, «homens paralisados de medo» e outros desafiadores da ordem, conflitos violentos, cenas de pancadaria, mexericos, maledicência, o diabo à solta em machos assaltados pelos feitiços de fêmeas infernizadas, o sexo, a bebedeira, a tirania da opinião pública «nesse mundo pouco alfabetizado», o medievalismo das relações institucionais e a sua subsequente projecção na vida das famílias. E, sobretudo, uma enorme e crescente vontade de ir dali para fora, emigrar.
Mas o que mais impressiona nestes relatos é a voluptuosidade da linguagem, o equilíbrio que estabelece entre pensamento e emoção, a riqueza das metáforas, o entusiasmo na descrição: «As pernas das mulheres, vistas à luz submarina, desenhavam deformações carnais, carnívoras, carnifluentes e fluorpenetradas, assim rendilhadas de cor e som, como só a linguagem violada se exprimirrompe na deflagrejaculação da mordaça» (p. 104). O exemplo, respigado do conto A Piscina, é talvez o mais radical possível de uma escrita onde as palavras fluem livremente como uma espécie de anomalia, pois, afinal, reflectem justamente uma enorme vontade de dizer obstruída pela força de calar. Disto resulta uma moral, talvez a única que possamos admitir como certa em toda a obra de José Martins Garcia: «Meço o mundo em função dum só desejo: o de que não me perturbem o sonambulismo» (p. 167).

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