sexta-feira, 23 de março de 2018

UM CONTO DE JOSÉ MARTINS GARCIA

O VÓMITO

   Da primeira vez, vomitou um rolo de cabelo, tão negro e tão enrodilhado que de uma ponta à outra do povoado se conheceram detestáveis efeitos. Nas casas cimeiras, lá para as bandas onde Mariela embruxava os homens, foram vistos cabelos rodopiando ao pôrdosol, por cima das chaminés. Nas casas da parte baixa, onde Francisco definhava a olhos vistos, alguns pêlos lograram introduzir-se no ânus do sacristão. Julgaram os parentes que, depois de tão fantásticas demonstrações, o moço Francisco se curaria daquela infernal paixão. Erradamente. Magro de amor e revolta, Francisco tornou a rondar Mariela, a qual, cada vez mais saudável, mais risonha, desafiava os vivos e os mortos com a oscilação das tetas e das ancas.
   Da segunda vez, vomitou um animal de feio cariz, uma pequena rã sem olhos nem patas. O coaxar dessa imundície perturbou quem tivesse ouvidos para ouvir. Era inverno e a nortada lembrava um charco podre quando, alta noite, se punha a sacudir os tectos e as almas. E afirmam ainda que a dita rã, armada de poderes superdivinos, proliferou em minúsculos diabos, capazes de resistir à água benta, pois foram achados dois desses exemplares no fundo da pia baptismal. Desta vez, era a sagrada pessoa do abade que se via a contas com o poder satânico. Mandou sepultar os demónios na parte não benzida do cemitério, a ver se a vizinhança das cruzes lhes abortava a ressurreição. O que parece ter acontecido.
   Da terceira vez, vomitou uma lagartixa, cuja cauda ultrapassava os dois metros. As mulheres honradas e as beatas passaram a sofrer perseguições nocturnas, tão atrozes como as de virgens lançadas aos leões. Ao meterem-se em suas honestas camas, sentiam o visco da lagartixa a procurar-lhes as partes recônditas, e a cauda de dois metros, forjando e multiplicando nós infinitos, deixava-lhes nas carnes profundas marcas de flagelação, além de penetrar selvaticamente todas as bocas do corpo. Reuniram-se em penitência, confessaram-se, comungaram, jejuaram e choraram. Mas de quando em quando, em noite fria, em leito casto, uma malvada lagartixa troçava da moral, maculava os lençóis e ia-se embora antes do alvorecer.
   Da quarta vez, vomitou uma negra moreia, peixe repelente parecido com a cobra; parente, por conseguinte, do bem conhecido tentador de Adão e Eva. Perante a progressão dos fenómenos apontados, a mãe Elvira, que paria oito vezes sem conhecer as delícias conjugais, resolveu guardar segredo. Estava a morei negra no pátio da pobre casa, num abandono tão evidente que o coração de Elvira se enterneceu. Enroscadinha, com a tristonha cabeça sob a cauda, doméstica. Elvira foi à cozinha buscar a faca maior. Esticou o animal adormecido e ia cortar-lhe a cabeça, quando a fera, abrindo uns olhos descomunais, a mordeu no pulso fazendo cair a faca. Elvira levantou a comprida saia para se pôr em fuga. Mas o gelo dos membros paralisou-a. A morei espreguiçou-se e, brusca, entrou inteira na vulva de Elvira, começando logo a roer cavidades e vísceras. Era uma fábula ao invés da de Jonas no ventre da baleia.
   Enquanto Elvira garantia a infinita dor das suas entranhas, Francisco comportava-se com filial ingratidão. Seguia Mariela com obsessão canina, até à transparência. Cuspia nas admoestações. Mariela descia, Mariela subia, Mariela enchia as ruas, Mariela sorria, Mariela gargalhava, Mariela era uma estátua reincarnada em dezasseis primaveras, sem sofisticação nem bafo de cidade, carne cheirando a terra antiga, Vénus sem Milo, braços roliços, umas ancas de louvar a Deus e uns seios nunca vistos. As mulheres honradas e as beatas odiavam-lhe principalmente os seios, duas montanhas, dois orgulhos acima duma cintura fina. E puseram a circular que Mariela não usava soutien. O que Francisco desmentiu, por lho ter visto, túmido e irritado pela calúnia.
   — Diz a essa puta que os amarre com uma toalha! — gritou Elvira, sentindo uns dentes de moreia cravados no coração de mãe.
   Francisco sumiu-se, transparente e febril. Elvira tornou à bruxa, solicitando um contra-bruxedo mais forte, uma beberagem absolutamente eficaz. A bruxa pôs os olhos em alvo e deixou correr as chispas de adivinhação.
   — No café! — disse.
   E entregou a Elvira a mais da desembruxante das bebidas, vagamente doirada, numa garrafa de litro.
   Da quinta vez, Francisco vomitou um elefante. Nunca ninguém avistara monstruosidade comparável. Tinha três metros de altura e cinco de comprimento. As orelhas terminavam em gume e a cauda exibia uma flecha. Os dentes eram de prata e os olhos rodeados por pestanas de fogo. A tromba mediria uns cinquenta metros, de modo que tanto a bruxa como o abade sentiram estranhas comichões nos sexos. Quanto às partes vergonhosas do monstro, eram de fêmea: vagina transcendental e tão albergue que meio povoado macho por ela entrou sem nunca mais ter sido detectado.
   Rezam crónicas fidedignas que Mariela e Francisco se casaram e tiveram muitíssimos filhos. Por isso a terra se repovoou, compensando amplamente os estragos causados pelo elefante. Quanto a outras consequências desse matrimónio, registou-se ainda o seguinte: Francisco, saciado o amor, começou a engordar; Mariela, começando a parir, deixou pender os seios.
   Um ano após a noite de núpcias, já eram pessoas normais.


José Martins Garcia (n. 1941 - m. 2002), in Morrer Devagar, 1.ª edição, Arcádia, 1979, 2.ª edição, Companhia das Ilhas, Dezembro de 2017, pp,. 113-117. José Martins Garcia é um escritor extraordinário que não faz sentido manter esquecido. A Companhia das Ilhas tem vindo a reeditar toda a sua obra, em volumes que podem ser adquiridos: aqui. Leituras de algumas dessas obras foram partilhadas neste weblog: O Medo, A Fome, Lugar de Massacre. Encontrei uma entrevista ao autor nos arquivos da RTP: aqui

1 comentário:

Transhümantes disse...

Adorei,adorei!!! Desconheço o autor mas irei pôr-lhe atenção.