quinta-feira, 8 de março de 2018

RUA ANTES DO CÉU


Aquando da estreia com “Paraíso Apagado por um Trovão” (Edição do autor, 2003), o poeta cabo-verdiano José Luiz Tavares (n. 1967) gerou um entusiasmo que, passados quinze anos e várias obras publicadas, não esmoreceu. A 6 de Março de 2004, António Cabrita referia-se a esse livro de estreia como «a mais “autoritária” primeira obra que li nos últimos anos». E no ano seguinte, entretanto a propósito de “Agreste Matéria do Mundo” (Campo das Letras, 2004), o mesmo Cabrita voltava a escrever sobre esta poesia referindo-se a «uma auto-reflexividade que se compraz na remodelagem de géneros e tropos literários mas com um sentido de oportunidade e uma vivacidade que salva sempre o texto da literatice» (Expresso, 23 de Abril de 2005). “Rua Antes do Céu” (Abysmo/Rosa de Porcelana, Outubro de 2017) não foi o único livro publicado por Tavares no ano passado, sendo também desse ano “Polaroides de Distintos Naufrágios” (Rosa de Porcelana, Setembro de 2017). Aos cinquenta nos de vida, o autor quis assim reafirmar uma vitalidade criativa que só os mais distraídos poderiam julgar ameaçada.
Os dois ciclos ou blocos ou conjuntos, como preferirem, coligidos em “Rua Antes do Céu” são precedidos de um poema intitulado “Umbral”, intróito porventura desnecessário onde se convoca a infância perdida enquanto motivo de questionamento dos «tropeços da vida» na sua relação com a ideia de morte. O tema, caríssimo a um poeta como Ruy Belo, é abordado por Tavares sem redes nem delimitações. Os primeiros trinta poemas, reunidos sob o título “Telhados Longínquos”, dão prova do risco que é o de sujeitar a poesia à reflexão filosófica. Este teste de resistência, que podia, eventualmente, ameaçar a dimensão estética do poema, é levado a cabo com uma linguagem densa, repleta de adjectivos, declaradamente metafórica — «obrigado / pelo vício das metáforas» (p. 16) —, contrastando deveras com a mais óbvia tendência da poesia portuguesa dos últimos vinte ou trinta anos. Mas neste caso o poema não se esgota em floreados lexicais, convoca as musas com o intuito de questioná-las, de repensar a poesia num contexto de dessacralização, reivindicando para a palavra um estatuto que há muito lhe foi  usurpado: o de verbo, origem, fundação, criação.
Assim sendo, estes telhados longínquos remetem para uma situação de desabrigo, de desterro e de desamparo que, enquanto matéria de poesia, é igualmente o retrato de uma fome ontológica (vide p. 75) que o conjunto seguinte aprofunda e reforça. «Esforçado / amanuense do verbo», o poeta convoca a infância como quem procura penetrar num território original, não com intenções memorialistas ou impelido pela nostalgia de um passado longínquo, mas fazendo antes dessa convocação pretexto para pensar/reflectir a vida, o tempo e o lugar da poesia na engrenagem. Se a realidade assalta amiúde o poema, nunca toma definitivamente conta dele. Considerações metafísicas de ordem diversa impõem-se-lhe. Não será por acaso que a palavra naufrágio surge frequentemente, associada, por vezes, à «angústia pacificada / de já não haver povo para a poesia» (p. 49), e, noutras ocasiões, «à criação sem deus» ou sem deuses, já muito distante de concepções órficas, desprovida de heróis, apenas ocupada por e com seres sujeitos à «destilação do passado» (p. 60). O regresso a casa ensaiado no conjunto “Rua Antes do Céu”, acompanhado de irónicas referências homéricas, é como que uma provocação estabelecida pela própria existência: «mas regressar a casa / onde ela já não existe / é só um modo / de se desembaraçar / do passado» (p. 116).
A poesia de José Luiz Tavares surge-nos sistematicamente envolta num tom enigmático, os versos soltam pistas que sugerem sentidos ou apelam a uma decifração impossível de esgotar. No fundo, o problema parte do mesmo princípio que opõe a efemeridade da existência individual a uma ideia de perenidade que já foi a da poesia. O “bafo da transitoriedade” é tudo quanto podemos almejar: «Também eu habituei-me demasiado / ao cimento armado da poesia, / suas regras e prescrições, olvidado / do milagre de estar a sós comigo / nos desalinhos do mundo, buscando / um sentido que coincidisse de novo / com essa rua da infância, // aproximativa imagem de um paraíso / que só em tinta hei divisado, / agora mais perto dos inescapáveis infernos / que um caronte a cair de bêbado, / mas ainda de remo apto à travessia, / personifica no último café da freguesia» (p. 63-64). Este Caronte em minúsculas é quanto sobra, sendo certo que do inferno estaremos um dia a salvo. Nem que seja por cegueira, saldando contas com a beleza numa existência de esquecimento e de silêncio. Porque, afinal, no final, «O inferno são as palavras» (p. 100). Mesmo que, tornadas poesias, residam algures numa “Rua Antes do Céu”.

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