Aquando da estreia com “Paraíso Apagado por um Trovão”
(Edição do autor, 2003), o poeta cabo-verdiano José Luiz Tavares (n. 1967)
gerou um entusiasmo que, passados quinze anos e várias obras publicadas, não
esmoreceu. A 6 de Março de 2004, António Cabrita referia-se a esse livro de
estreia como «a mais “autoritária” primeira obra que li nos últimos anos». E no
ano seguinte, entretanto a propósito de “Agreste Matéria do Mundo” (Campo das
Letras, 2004), o mesmo Cabrita voltava a escrever sobre esta poesia
referindo-se a «uma auto-reflexividade que se compraz na remodelagem de géneros
e tropos literários mas com um sentido de oportunidade e uma vivacidade que
salva sempre o texto da literatice» (Expresso, 23 de Abril de 2005). “Rua Antes
do Céu” (Abysmo/Rosa de Porcelana, Outubro de 2017) não foi o único livro
publicado por Tavares no ano passado, sendo também desse ano “Polaroides de Distintos Naufrágios” (Rosa de Porcelana, Setembro de 2017). Aos cinquenta nos de vida, o autor quis assim reafirmar uma vitalidade
criativa que só os mais distraídos poderiam julgar ameaçada.
Os dois ciclos ou blocos ou conjuntos, como preferirem,
coligidos em “Rua Antes do Céu” são precedidos de um poema intitulado “Umbral”,
intróito porventura desnecessário onde se convoca a infância perdida enquanto
motivo de questionamento dos «tropeços da vida» na sua relação com a ideia de
morte. O tema, caríssimo a um poeta como Ruy Belo, é abordado por Tavares sem
redes nem delimitações. Os primeiros trinta poemas, reunidos sob o título “Telhados
Longínquos”, dão prova do risco que é o de sujeitar a poesia à reflexão
filosófica. Este teste de resistência, que podia, eventualmente, ameaçar a
dimensão estética do poema, é levado a cabo com uma linguagem densa, repleta de
adjectivos, declaradamente metafórica — «obrigado / pelo vício das metáforas» (p. 16) —, contrastando deveras com a mais óbvia tendência da poesia portuguesa
dos últimos vinte ou trinta anos. Mas neste caso o poema não se esgota em floreados
lexicais, convoca as musas com o intuito de questioná-las, de repensar a
poesia num contexto de dessacralização, reivindicando para a palavra um estatuto
que há muito lhe foi usurpado: o de verbo, origem, fundação, criação.
Assim sendo, estes telhados longínquos remetem para uma
situação de desabrigo, de desterro e de desamparo que, enquanto matéria de
poesia, é igualmente o retrato de uma fome ontológica (vide p. 75) que o
conjunto seguinte aprofunda e reforça. «Esforçado / amanuense do verbo», o
poeta convoca a infância como quem procura penetrar num território original,
não com intenções memorialistas ou impelido pela nostalgia de um passado
longínquo, mas fazendo antes dessa convocação pretexto para pensar/reflectir a
vida, o tempo e o lugar da poesia na engrenagem. Se a realidade assalta amiúde
o poema, nunca toma definitivamente conta dele. Considerações metafísicas de
ordem diversa impõem-se-lhe. Não será por acaso que a palavra naufrágio surge
frequentemente, associada, por vezes, à «angústia pacificada / de já não haver
povo para a poesia» (p. 49), e, noutras ocasiões, «à criação sem deus» ou sem
deuses, já muito distante de concepções órficas, desprovida de
heróis, apenas ocupada por e com seres sujeitos à «destilação do passado» (p.
60). O regresso a casa ensaiado no conjunto “Rua Antes do Céu”, acompanhado de irónicas
referências homéricas, é como que uma provocação estabelecida pela própria
existência: «mas regressar a casa / onde ela já não existe / é só um modo / de
se desembaraçar / do passado» (p. 116).
A poesia de José Luiz Tavares surge-nos sistematicamente
envolta num tom enigmático, os versos soltam pistas que sugerem sentidos ou
apelam a uma decifração impossível de esgotar. No fundo, o problema parte do
mesmo princípio que opõe a efemeridade da existência individual a uma ideia de
perenidade que já foi a da poesia. O “bafo da transitoriedade” é tudo quanto podemos
almejar: «Também eu habituei-me demasiado / ao cimento armado da poesia, / suas
regras e prescrições, olvidado / do milagre de estar a sós comigo / nos
desalinhos do mundo, buscando / um sentido que coincidisse de novo / com essa
rua da infância, // aproximativa imagem de um paraíso / que só em tinta hei
divisado, / agora mais perto dos inescapáveis infernos / que um caronte a cair
de bêbado, / mas ainda de remo apto à travessia, / personifica no último café
da freguesia» (p. 63-64). Este Caronte em minúsculas é quanto sobra, sendo
certo que do inferno estaremos um dia a salvo. Nem que seja por cegueira,
saldando contas com a beleza numa existência de esquecimento e de silêncio.
Porque, afinal, no final, «O inferno são as palavras» (p. 100). Mesmo que, tornadas
poesias, residam algures numa “Rua Antes do Céu”.
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