quinta-feira, 1 de março de 2018

SEMENTES!


(fotografia de Jorge Aguiar Oliveira)


Escreveu Henry David Thoreau: «Aquele que come o fruto deve pelo menos deitar a semente à terra, e mesmo, se possível, uma semente melhor do que a que deu o fruto que acaba de comer. Sementes!» É de um livro que ando a ler, “Uma Semana nos Rios Concord e Merrimack”. Mas e se o terreno for infértil? E se à volta medrar apenas a esterilidade de um tempo atroz? Caem bombas na Síria, matam-se crianças, celebram-se novas armas de precisão na Rússia, sugere-se o armamento dos professores na América, raptam-se centenas de meninas na Nigéria, fecham-se livrarias em Portugal… Há tempos, escrevia eu aqui: «Talvez um dia venhamos a ser apanhados de surpresa com a notícia do fecho de um dos mais belos e agradáveis espaços da baixa conimbricense, a livraria antiquário do Miguel de Carvalho. Nessa altura teremos direito a 1700 lamentos, 1700 comentários no Facebook, 1700 likes, 1700 manifestações deindignação sobre o estado a que isto chegou, o fim do comércio tradicional, as cidades invadidas por turistas, as livrarias que fecham, 1700 tretas fiadas para disfarçar o indisfarçável: não há negócio que sobreviva sem vendas». E o anúncio cai como uma bomba no meu coração, porque não consigo entender que numa cidade como Coimbra, isto é, com a dimensão de Coimbra, com a reputada tradição cultural de Coimbra, ó ficções, uma livraria como a do Miguel não se aguente. Há dias em que deixamos de ter paciência para os dias. Este é um deles. Espaço dinâmico, bonito, acolhedor, esmeradamente decorado e apetrechado, e não chega. Onde andam os professores? Onde andam os alunos? Onde andam os 1700 poetas deste país? Por onde andam as pessoas, foda-se?! De que precisamos nós no mundo para que as sementes despontem até ao fruto? Anestesiados, cada vez mais anestesiados, com lixo digital e demais porcarias, deixamos que tudo à nossa volta se vá transformando em ruína e sobras. Nada disto faz sentido, este estado lamentável de coisas não faz sentido. Um miserável € por mês vezes 1700 talvez desse para aguentar uma renda, e assim um terreno fértil de esperança, um espaço fecundo de liberdade e amor contra os cenários de guerra que tomam conta deste filha da puta de mundo patético, absurdo, incompreensível. Lamentos já não chegam, lamentos não nos protegem das armas de destruição em massa apontadas ao pensamento, ao sonho, à alegria de viver. Está anunciado: mais um fim, um encerramento, uma espécie de morte no horizonte. Está anunciado com o peso da tristeza a invadir-nos por sabermos quão injusta é a notícia para todos quantos ainda têm fé nalguma humanidade, a de homens como o Miguel que sonham e fazem e concretizam e cuidam do nosso tempo conferindo-lhe dignidade. Como é possível que não seja possível?

6 comentários:

flor disse...

isto ando tudo trocado, tudo uma merda. nunca vi uma apatia tão crónica.

LMR disse...

No passado comprei-lhe alguns livros (online, claro); também não entendo o fracasso de um alfarrabista numa cidade universitária.

Onde é que andam os alunos? Podem estar na Universidade, mas não estão a ler. Há dias passei pela FLUL e reparei, como já reparara antes, que raramente se encontra um aluno com livros nas mãos. Podem andar por lá, podem ter escolhido Línguas e Literaturas, mas têm sempre os livros fechados, quando os têm, quando não têm um telemóvel na mão. Até a única livraria da FLUL fechou há meses.

hmbf disse...

Meu caro, tive um colega em Filosofia que se gabava de estar no último ano do curso sem nunca ter lido um livro na vida.

hmbf disse...

E naquela época praticamente ninguém andava com telemóvel, dos que só davam para fazer chamadas. A própria net, aliás, era coisa incipiente.

Ivo disse...

Não sei bem até que ponto entronca neste post, mas passo a contar: Tive ontem conhecimento, pela boca do próprio, aluno de 9° ano, que as suas aulas de História consistem em a professora entregar 1/2 perguntas por aula, para as quais os alunos são servidos de meia hora para responder. Por escrito. Passado esse tempo, ela divulga a resposta pretendida. Fazem assim a construção do próprio manual de estudo, já que a professora, suas palavras, não gosta de seguir manuais mas pensa editar um escrito por ela. Consistem os testes de avaliação única e exclusivamente de tais perguntas - mas, atenção, palavras do aluno, com a dificuldade de as perguntas não virem nas exatas palavras usadas na aula. Por momentos julguei-me a delirar, ou que ele estivesse a gozar. Não. É verídico. E assustador, digo eu.
Ora bem, assim sendo, livros? Para quê?

hmbf disse...

Não é caso único.