domingo, 11 de março de 2018

UMA SEMANA NOS RIOS CONCORD E MERRIMACK


No final do Verão de 1839, Henry David Thoreau (n. 1817 – m. 1862) empreendeu uma viagem, na companhia do seu irmão John Thoreau, Jr. (n. 1815 – m. 1842), através do rio Concord até à sua foz, no rio Merrimack. Dessa viagem resultou o primeiro livro do autor norte-americano, publicado originalmente em 1849. Disto nos dá conta H. Daniel Peck na introdução à edição que agora se publica com tradução para português por Luís Leitão: “Uma Semana nos Rios Concord e Merrimack” (Antígona, Janeiro de 2018). Passaram dez anos entre a experiência da viagem e a publicação do livro, intervalo particularmente estigmatizado na vida de Thoreau pela perda do irmão. Mais do que um mero relato de viagem, esta obra de estreia acabará por se estabelecer como porta de entrada para o pensamento de um dos mais relevantes escritores do século XIX. Demorará o seu tempo, como sempre acontece com os melhores. À época, de uma edição de 1000 exemplares, foram precisos quatro anos para se venderem cerca de 200. Estávamos nos Estados Unidos da América do Norte, a penetrar devagarinho a segunda metade do século XIX. Entretanto, tudo mudou para continuar na mesma. E não foi preciso odiar-se saudavelmente os livros, que muitos foram de facto severamente odiados. A ponto de alimentarem gigantescas fogueiras.
Organizado em capítulos que correspondem aos dias de uma semana, o livro está longe de obedecer a um nexo cronológico. O autor não foge à descrição paisagística, ao inventário de flora e fauna contemplados ao longo da viagem, faz-se acompanhar de um dicionário geográfico onde respiga características dos lugares visitados, apontamentos históricos relevantes, os factos fixados por uma história que, por vezes, aparenta ser mais do domínio da ficção do que da realidade. A viagem no rio é também uma viagem no tempo, havendo entre o curso natural das águas e a passagem dos dias associações simbólicas que provêm de eras mitológicas e o presente não renega. “Uma Semana nos Rios Concord e Merrimack” corresponde a um mergulho profundo nos pensamentos de um homem que de facto pensava. Pensava o seu tempo na relação com o passado, pensava a natureza embrenhando-se nela, pensava de um modo vital por ser nele o pensamento uma forma de respiração, pensava reflectindo sobre o que observava e até observando o que outros antes dele haviam pensado. À componente narrativa sobrepõe-se o impulso da meditação, pautado pela experiência da perda e, por isso mesmo, num tom por vezes elegíaco que aflui invariavelmente num fecundo elogio da Natureza.
São inúmeros e diversos os assuntos tratados por Thoreau nesta obra. Dos mistérios da criação à vida na natureza, das transformações operadas pelo progresso a uma ideia de civilização, desta ao selvagem, da vida humana à vida animal, do «Tempo, esse grande ceifeiro» (p. 66) à decadência da paisagem: «Quem quiser saber alguma coisa dos seus primórdios, o melhor é perguntar às velhas rochas cinzentas na pastagem» (p. 77). A Natureza tem uma linguagem que urge decifrar, entender, as velhas cidades ao abandono, nas margens do rio, são um sinal que não determina o curso das águas. Thoreau interessa-se pelo índio, rejeita os conceitos de civilização impostos pelos pioneiros, questiona a mitologia e as grandes religiões, a fé e as igrejas, relativiza-as no Tempo para torná-las compreensíveis «Todas as pessoas têm os deuses adequados às suas circunstâncias» (p. 93) , pensa a ciência e o seu papel no desenvolvimento da humanidade, elabora uma crítica profunda de um certo cristianismo, contrapondo-o ao budismo e ao hinduísmo, opõe o homem Oriental ao Ocidental, fá-lo sem pregar doutrinas nem impor projectos. Fá-lo da mesma forma que sugere leituras, o “Bhagavad-Guitá”, de preferência, ou empreende distinções entre génio e intelecto: «Há duas classes de homens a que chamamos poetas. Uns cultivam a vida, os outros, a arte uns procuram comida para se alimentarem, outros, para saborearem; uns satisfazem a fome, outros comprazem o palato» (p. 411). Homero, Goethe, Chaucer, Anacreonte, Confúcio, Shakespeare, entre outros, tantos outros, são lidos, criticados, traduzidos como quem atravessa pontes entre séculos para poder chegar de uma margem à outra na História do pensamento humano.
Especialmente interessantes são as reflexões sobre poesia, acompanhadas elas mesmas de inúmeros poemas: «Na minha opinião, se os homens lessem como deve ser, só leriam poemas. Não há história nem filosofia que os possa substituir» (p. 118). Não nos entusiasmemos em vão, o mesmo será dito sobre os Textos Sagrados de todas as nações. Reivindicada a utilidade do poema, importa elogiar-lhe a simplicidade do exemplo enquanto garantia de experiência: «Uma frase deve ser lida como se o seu autor, tivesse ele um arado em vez de uma caneta, pudesse ter aberto um rego profundo de uma ponta à outra» (p. 134). E já então a relevância de uma vida anterior ao poema, fora das quatro paredes que oprimem a respiração e deformam a palavra, tornando-a mais coisa do intelecto do que ânimo e sopro. «Só por milagre a poesia é escrita» (p. 365). Ante o teórico, a experiência vivida, o privilégio do contacto directo, a aventura da descoberta, do desconhecido e do diverso. «O talento da composição é muito perigoso é extrair o coração da vida, como quando o índio arranca um escalpe» (p. 365). E já então o lamento no diagnóstico: «O poeta veio para dentro de portas e trocou a floresta e as escarpas pela lareira, e a cabana do Gael, e Stonehenge com os seus círculos de pedra, pela casa do inglês. Nenhum herói se encontra à porta, preparado para irromper a cantar ou a lançar-se na acção destemida, mas um inglês simples, que cultiva a arte da poesia. Vemos a lareira acolhedora e ouvimos a lenha a crepitar em todos os versos» (p. 404). O resumo perdura no tempo, atravessa épocas e eras como a água do rio que não pára de correr. Por arrasto, as sobras do incêndio, a cinza, um mar de lama onde o caminhante incauto atolará as botas. Até que tudo seja deserto, isto é, apenas memória de haver sido.

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