terça-feira, 24 de abril de 2018

A NEVE QUE TOMBA NO RIO

Quando Deus criou o mundo, é evidente que não anteviu os futuros laços de amizade entre o homem e o cão, ou talvez Ele tivesse razões concretas e, a nosso ver, insondáveis, para atribuir ao cão uma longevidade cinco vezes mais curta do que a do seu dono. Na vida humana há já sofrimento suficiente — do qual toda a gente recebe a sua parcela — no momento de nos despedirmos dum ente querido, e quando vemos aproximar-se o fim, inevitavelmente predestinado pelo facto de a pessoa em questão ter nascido algumas décadas antes de nós, é lícito que perguntemos a nós mesmos se será correcto darmos o nosso amor a uma criatura que será vencida pela senilidade e pela morte antes mesmo que um ser humano, nascido exactamente no mesmo dia, chegue sequer a sair da infância. É para nós uma triste lembrança do carácter transitório da vida terrena quando um cão, que há apenas alguns anos — os quais nos parecem somente alguns meses — não passava dum cachorro trôpego e amoroso, começa a revelar sinais inequívocos de velhice e percebemos que o seu fim não tardará mais de dois ou três invernos. Tenho de admitir que sempre me deprimiu ver envelhecer os cães de quem gostava muito, e que esse triste espectáculo acentuou consideravelmente a melancolia que afecta uma vez por outra todo o ser humano ao pensar nos desgostos que o futuro lhe reserva. Além disso, não esqueçamos o cruel dilema em que se encontram todos os possuidores de cães quando o seu animal de estimação é vitimado na velhice por uma qualquer doença incurável, e se coloca a questão fatal de saber se o quando o bicho deverá ser abatido sem dor. Por estranho que pareça, até ao presente o destino poupou-me a esta decisão, dado que, com uma única excepção, todos os meus cães atingiram uma idade vetusta e tiveram uma morte súbita e indolor, sem qualquer intervenção da minha parte. Contudo, ninguém pode contar com isto, e eu não censuro as pessoas sensíveis que, antevendo a inevitável despedida final, se abstêm de adquirir um cão. Não as censuro? Bem, na verdade, talvez o faça. Na vida humana, há um preço de infelicidade a pagar por todos os prazeres, pois, tal como nos diz Burns:

Os prazeres são como papoilas espalhadas,
Assim que as colhemos, o seu brilho fenece;
Ou como a neve que tomba no rio
Um momento branca — mas logo derretida para sempre...

Além disso, e eis o ponto fundamental, tenho na conta de medroso o homem que renuncia aos poucos prazeres toleráveis e eticamente irrepreensíveis da vida por receio de ter de pagar a conta que, mais cedo ou mais tarde, o destino lhe apresentará. O melhor que tem a fazer aquele que teme saldar a sua dívida de sofrimento é refugiar-se num sótão, qual solteirona, e aí murchar aos poucos como um bolbo estéril, incapaz de florir.

Konrad Lorenz, in E o Homem Encontrou o Cão..., trad. Paulo Faria, Relógio D'Água, Abril de 1997, pp. 251-253.

1 comentário:

maria disse...

um texto (tema) que me envia em diferentes reflexões. grata!

e aí para a família, quando for possível, que venha outro cachorro.