segunda-feira, 2 de abril de 2018

CANTOCHÃO


Apesar de ter começado a publicar em 1999, o nome de Vítor Nogueira (n. 1966) apenas começou a tornar-se familiar junto dos leitores de poesia com o livro Senhor Gouveia (Averno, 2006). Nítidos e narrativos, os poemas desse livro resgatavam uma certa ruralidade para a poesia portuguesa. A ironia era também marca visível, particularmente no modo como caracterizavam a província e seus tiques na figura da personagem que emprestou título ao livro. Colectâneas posteriores ampliaram o panorama geográfico desta poesia — natural de Vila Real, o autor tem abordado amiúde a cidade de Lisboa —, a qual se manteve fiel, porém, a um dizer sóbrio, intimista, relacionado com a experiência pessoal de lugares e de situações. Independentemente da familiaridade dos cenários escolhidos, julgo ser precavido guardar alguma distância quanto a chavões como o de “poesia da experiência” relativamente aos poemas de Vítor Nogueira. Mais estimulante será considerá-los a partir de uma perspectiva que se concentre na natureza do sujeito poético e na sua relação com a memória. Os dois conjuntos de Cantochão (Averno, Dezembro de 2017) colocam-nos esse desafio, até pelo que de indiciador de uma certa dissimulação possa estar incluído nos títulos respectivos: Primeira Voz e Segunda Voz.
Os poemas dirigem-se quase invariavelmente a uma segunda pessoa, não sendo certo quem ela possa ser. No poema Vozes, da primeira parte do segundo conjunto, essa segunda pessoa é o próprio sujeito poético: «Pois bem, / sujeito poético, estás de novo dentro / de um maldito livro, a falar com vozes / que não distingues» (p. 65). Quem será este sujeito? De onde virão estas vozes? Sentimo-nos tentados a responder referindo «os vários eus» invocados no poema Cantabile ou «uma inteira multidão num corpo só» do poema Tutti, ambos do primeiro conjunto. Estes “eus” não são exteriores ao sujeito, eles vivem dentro do sujeito, perduram na memória do sujeito. Por vezes, são como fantasmas. No fundo, são a memória de um eu que já não é, são a sombra de um ser em transformação, são a consciência interna dessa transformação, a consciência de haver sido qualquer coisa que se perdeu, que se esfumou com o tempo: «Fragmentos das nossas memórias / como luzes dirigidas ao futuro» (p. 11), lê-se no primeiro poema.
O passado, a infância, a juventude, ou melhor, as memórias do passado, da infância, da juventude, surgem estimuladas pelo regresso a um lugar, uma rua, uma casa que fica nessa rua, o sótão de uma casa que fica nessa rua onde outrora viveu um sujeito real, agora  sujeito poético: «Mas o tempo transformara / a rua da tua infância. Eram já outras as vozes / que no ar se desfaziam» (p. 21). A complexidade desta relação pode ser associada aos ritmos e movimentos que oferecem título aos poemas do primeiro conjunto, poemas no interior dos quais encontramos imagens repetidas como ecos provenientes de uma época ausente. Repletos de interrogações, estes poemas procuram responder ao dilema que toda a espécie de nostalgia coloca: valerá a pena olhar para trás? Não se trata de tentar reconstituir o que foi extinto, não se trata sequer de revisitar um lugar que se perdeu. Pelo menos não tanto quanto se tratará de destacar a natureza enclausurante da memória, tal como sugere a epígrafe roubada a Bernardo Soares: «Para onde pensar em fugir, se só a cela é tudo?»
Não há como fugir da memória, ela persegue-nos. Ela persegue um sujeito poético que, em aparência, é uma espécie de fuga (novamente a conotação musical) do sujeito ele mesmo: «Quem és tu e onde estiveste a vida toda?» (p. 45) Jogo de identidades, camuflagem, justaposição de vozes, «a poesia é uma cadência, / há muito que nasceu entrelaçada com a música» (p. 80). E o que podemos dizer que é a música senão o eco da respiração no interior do tempo? Remexendo o passado, Vítor Nogueira penetra o mistério da fantasmagoria identitária em poemas muito mais reflexivos do que tem sido costume na sua poesia: «Quem és tu, por trás da sombra, nesta foto / rejeitada que chegou à nossa mão? / Como eram os teus sonhos? Quem te amou? / Quem te chora desde o dia em que morreste?» (p. 91) Este tu a quem se dirige é um eu anulado pela passagem do tempo, extinto, propriedade de uma memória onde pereceu sem qualquer hipótese de ressuscitar, é poalha, sombra, fantasma, o eco de uma palavra escurecida, pronunciada como que por segundas vozes em tom directo, isto é, sem refrão.

Sem comentários: