Apesar de ter começado a publicar em 1999, o nome de Vítor
Nogueira (n. 1966) apenas começou a tornar-se familiar junto dos leitores de
poesia com o livro Senhor Gouveia (Averno, 2006). Nítidos e narrativos, os
poemas desse livro resgatavam uma certa ruralidade para a poesia portuguesa. A
ironia era também marca visível, particularmente no modo como caracterizavam a
província e seus tiques na figura da personagem que emprestou título ao livro. Colectâneas
posteriores ampliaram o panorama geográfico desta poesia — natural de Vila Real,
o autor tem abordado amiúde a cidade de Lisboa —, a qual se manteve fiel,
porém, a um dizer sóbrio, intimista, relacionado com a experiência pessoal de
lugares e de situações. Independentemente da familiaridade dos cenários
escolhidos, julgo ser precavido guardar alguma distância quanto a chavões como
o de “poesia da experiência” relativamente aos poemas de Vítor Nogueira. Mais
estimulante será considerá-los a partir de uma perspectiva que se concentre na
natureza do sujeito poético e na sua relação com a memória. Os dois conjuntos
de Cantochão (Averno, Dezembro de 2017) colocam-nos esse desafio, até pelo que
de indiciador de uma certa dissimulação possa estar incluído nos títulos
respectivos: Primeira Voz e Segunda Voz.
Os poemas dirigem-se quase invariavelmente a uma segunda
pessoa, não sendo certo quem ela possa ser. No poema Vozes, da primeira parte
do segundo conjunto, essa segunda pessoa é o próprio sujeito poético: «Pois
bem, / sujeito poético, estás de novo dentro / de um maldito livro, a falar com
vozes / que não distingues» (p. 65). Quem será este sujeito? De onde virão
estas vozes? Sentimo-nos tentados a responder referindo «os vários eus»
invocados no poema Cantabile ou «uma inteira multidão num corpo só» do poema
Tutti, ambos do primeiro conjunto. Estes “eus” não são exteriores ao sujeito,
eles vivem dentro do sujeito, perduram na memória do sujeito. Por vezes, são como
fantasmas. No fundo, são a memória de um eu que já não é, são a sombra de um
ser em transformação, são a consciência interna dessa transformação, a consciência
de haver sido qualquer coisa que se perdeu, que se esfumou com o tempo:
«Fragmentos das nossas memórias / como luzes dirigidas ao futuro» (p. 11),
lê-se no primeiro poema.
O passado, a infância, a juventude, ou melhor, as
memórias do passado, da infância, da juventude, surgem estimuladas pelo
regresso a um lugar, uma rua, uma casa que fica nessa rua, o sótão de uma casa
que fica nessa rua onde outrora viveu um sujeito real, agora sujeito poético:
«Mas o tempo transformara / a rua da tua infância. Eram já outras as vozes /
que no ar se desfaziam» (p. 21). A complexidade desta relação pode ser
associada aos ritmos e movimentos que oferecem título aos poemas do primeiro conjunto,
poemas no interior dos quais encontramos imagens repetidas como ecos
provenientes de uma época ausente. Repletos de interrogações, estes poemas
procuram responder ao dilema que toda a espécie de nostalgia coloca: valerá a
pena olhar para trás? Não se trata de tentar reconstituir o que
foi extinto, não se trata sequer de revisitar um lugar que se perdeu. Pelo
menos não tanto quanto se tratará de destacar a natureza enclausurante da
memória, tal como sugere a epígrafe roubada a Bernardo Soares: «Para
onde pensar em fugir, se só a cela é tudo?»
Não há como fugir da memória, ela persegue-nos. Ela
persegue um sujeito poético que, em aparência, é uma espécie de fuga (novamente
a conotação musical) do sujeito ele mesmo: «Quem és tu e onde estiveste a vida
toda?» (p. 45) Jogo de identidades, camuflagem, justaposição de vozes, «a
poesia é uma cadência, / há muito que nasceu entrelaçada com a música» (p. 80).
E o que podemos dizer que é a música senão o eco da respiração no interior do
tempo? Remexendo o passado, Vítor Nogueira penetra o mistério da fantasmagoria
identitária em poemas muito mais reflexivos do que tem sido costume na sua
poesia: «Quem és tu, por trás da sombra, nesta foto / rejeitada que chegou à
nossa mão? / Como eram os teus sonhos? Quem te amou? / Quem te chora desde o
dia em que morreste?» (p. 91) Este tu a quem se dirige é um eu anulado pela
passagem do tempo, extinto, propriedade de uma memória onde pereceu sem qualquer
hipótese de ressuscitar, é poalha, sombra, fantasma, o eco de uma palavra escurecida,
pronunciada como que por segundas vozes em tom directo, isto é, sem refrão.
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