É claro que me lembro. Havia dois atalhos
pelo meio do pinhal, direcções espantosamente
precisas, animais que não voltei a ver.
Enquanto as colheitas amadureciam nos campos,
havia talismãs pendurados nas árvores e mercúrio
para tratar certas lesões, uma peça vital
do equipamento. Havia girassóis à volta da casa
e as palavras imortais dos espantalhos, uma forma
de evitar que endoidecêssemos. E havia um muro
que era preciso saltar, a manhã gloriosa
da escalada, a ciência das grandes migrações.
Mas não vale a pena entrar em mais detalhes.
Este é o meu corpo. Esta é a minha mente.
Conhecem-se desde a infância e cumpriram pena juntos.
Do futuro nada sei. Apenas que vem aí.
Vítor Nogueira (n. 1966), in Cantochão (2017). Publicou o
primeiro livro de poesia, A Volta ao Mundo em 50 Poemas, em 1999. Praticante de
uma linguagem sóbria, sem resquícios de exaltação emocional, opta amiúde por um
registo narrativo focado na derrocada da província e do que poderia sobreviver
de certa vivência rural em contextos urbanos. Fazendo uso de alguma ironia,
tende em diversos momentos para um olhar nostálgico desconfortável, ou seja,
inquieto perante o papel da memória na preservação do passado. «A poesia de
Vítor Nogueira é do lado da hiponímia, isto é, faz-se porção a porção, já que
nenhuma coisa visível se vê toda juntamente. Além de que o que não se vê,
residual, não cessa de se perseguir, por isso não se destapa a cortina» (Maria
Conceição Caleiro, Público, 28 de Dezembro de 2011).
1 comentário:
Muito bom.
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