Mestre da narrativa breve, assim descrito na segunda
badana de O Livro dos Abraços (Antígona, Março de 2018). Data de 1989 a
primeira edição deste livro do uruguaio Eduardo Galeano (n. 1940 – m. 2015).
Quem tenha lido as obras do “mestre” anteriormente publicadas pela Antígona,
facilmente concordará com a descrição. Mas Galeano é mais que isso. Serve de
prova, a título de exemplo, As Veias Abertas da América Latina (Antígona, Abril
de 2017). Outras há que, a seu tempo, deixarão claro e evidente o grande
escritor que foi, é, será sempre Eduardo Galeano. Não apenas “mestre da
narrativa breve”, como tantas vezes também se diz a propósito de Jorge Luis
Borges (n. 1899 – m. 1986), correndo-se o risco de reduzir à extensão do texto a
incomensurabilidade da observação, no caso de Galeano, ou da imaginação, no
caso de Borges.
A colectânea com
o título Mulheres (Antígona, Novembro de 2017) já tinha oferecido um cheirinho
de O Livro dos Abraços. Algumas das histórias deste volume foram reintegradas
naquele: A Paixão de Dizer 1, Profecias 1, Celebração da Realidade, A Fome 1, A
Noite 1, A Noite 2, A Noite 3, Crónica da Cidade de Bogotá, A Cultura do Terror
3, A Cultura do Terror 5, A Televisão 4, Chorar, As Flores, A Avó, Celebração
da Amizade 2. Mais coisa, menos coisa, a proveniência dos textos aparece
creditada no final de Mulheres. Sucede que nas versões portuguesas, sendo diferentes os tradutores,
parecem amiúde diferentes agora os textos. A Avó Bertha Jensen «morreu a amaldiçoar»
e viveu «toda a sua vida com pezinhos de lã» na versão de José Colaço
Barreiros, enquanto na versão de Helena Pitta a mesma avó «morreu blasfemando» e
«viveu toda a vida em bicos de pés». Se de amaldiçoar para blasfemar pode ser
pouca a diferença, não tão curta será de viver toda a vida «com pezinhos de lã»
ou «em bicos de pés». Ficamos assim com duas Bertha Jensen, sendo que para
Galeano eram exactamente a mesma.
Pelos títulos
supracitados podemos, desde já, mapear alguns traços gerais de O Livro dos
Abraços. Primeiro, a existência de sequências temáticas. Têm especial
relevância os conjuntos A Cultura do Terror (7 textos), A Televisão e Dizem as
Paredes (ambos com 5 textos) ou Os Índios (4 textos). Neste caso, serão mais de
4 os textos dedicados ao tema. Os índios ocupam na obra de Galeano um papel
relevantíssimo, são a prova viva da desgraça colonialista, são por vezes uma
espécie de fantasmas de um mundo extinto, da raiz apodrecida de uma cultura
sul-americana devastada pela colonização capitalista e pelas ditaduras
militares. São parte integrante de um cenário de miséria contra a qual se ergue
a pena do escritor, são a páginas 71:
OS ZÉS-NINGUÉM
Sonham as pulgas
comprar um cão e sonham os zés-ninguém sair da pobreza, que num dia mágico
chova a sorte de repente, chova a sorte a cântaros; mas a sorte não chove nem
ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem em chuvinha cai a sorte do céu, por
mais que os zés-ninguém a chamem, ou que lhes comiche a mão esquerda, ou que se
levantem com o pé direito, ou que comecem o ano trocando de vassoura.
Os zés-ninguém:
os filhos de ninguém, os donos de nada.
Os zés-ninguém:
os nenhuns, os ignorados, apertando o cinto, morrendo a vida, fodidos,
fodidíssimos.
Que não são,
embora sejam.
Que não falam
línguas, mas dialectos.
Que não
professam religiões, mas superstições.
Que não fazem
arte, mas artesanato.
Que não praticam
cultura, mas folclore.
Que não são
seres humanos, mas recursos humanos.
Que não têm
cara, mas braços.
Que não têm
nome, mas número.
Que não figuram
na história universal, mas nos casos do dia da imprensa local.
Os zés-ninguém,
que custam menos do que a bala que os mata.
Esta denúncia da
miséria humana em defesa dos desfavorecidos faz-se acompanhar de uma celebração
da vida e dos valores que mais a dignificam. Textos tais como Celebração da Voz
Humana 1, 2, 3 e 4, Celebração da Fantasia, Celebração da Realidade, Celebração
da Subjectividade, Celebração das Bodas da Razão com o Coração, Celebração das
Contradições 1 e 2, Celebração da Desconfiança, Celebração do Silêncio 1 e 2,
Celebração das Bodas da Palavra com o Acto, Celebração do Riso, Celebração do
Nascer Incessante, Celebração da Amizade 1 e 2, Celebração da Coragem 1, 2, 3 e
4, testemunham pelo exemplo os alicerces éticos e morais de uma oficina
literária que não renuncia ao seu papel mais social e político. Não se confunda
papel social e político, porém, com militantismo engajado. Trata-se de uma
dimensão filosófica em favor de uma cultura de liberdade, contra a opressão e a
humilhação daqueles que por infortúnio não têm defesa:
CELEBRAÇÃO DAS CONTRADIÇÕES 2
Soltar as vozes,
desfantasiar a fantasia: escrevo, querendo revelar o real maravilhoso, e
descubro o real maravilhoso no centro exacto do real pavoroso da América.
Nestas terras, a
cabeça do deus Eleguá leva a morte na nuca e a vida na cara. Cada promessa é
uma ameaça; cada perda, um encontro. Dos medos, nasce a coragem; e das dúvidas,
as certezas. Os sonhos anunciam outra realidade possível, e os delírios, outra
razão.
No fim de contas,
somos o que fazemos para mudar o que somos. A identidade não é uma peça de
museu, quietinha na vitrina, mas a sempre assombrosa síntese das nossas
contradições do dia-a-dia.
É nessa fé,
fugitiva, que creio. Parece-me a única fé digna de confiança, pelo muito que se
assemelha ao bicho humano, fodido mas sagrado, e à louca aventura de viver no
mundo.
(p. 123)
Advogado dos
miseráveis, Eduardo Galeano é igualmente um impressionante arquivista de
factos, de lendas, de mitos, de historietas resgatadas de uma invejável experiência
de vida. O belo convive nos seus textos com o horroroso, no pântano das
desgraças humanas ele colhe sementes de uma poesia cheia de vida. Neste livro,
o exemplo mais eloquente dessa incursão pelas memórias do vivido são as
crónicas dedicadas a cidades: Crónica da Cidade de Santiago, Crónica da Cidade
de Havana, Crónica da Cidade de Quito, Crónica da Cidade de Caracas, Crónica da
Cidade do Rio, Crónica da Cidade de Nova Iorque, Crónica da Cidade de Bogotá, Crónica
da Cidade do México, Crónica da Cidade de Buenos Aires, Crónica da Cidade de Montevideu,
Crónica da Cidade de Manágua. A preferência por cidades sul-americanas em O
Livro dos Abraços não pode ser dissociada de uma perspectiva da América Latina
que tem no horizonte tanto a experiência autobiográfica do exílio, marcada pela
dor da distância e da injustiça, como a esperança de uma democratização constantemente
ameaçada pela colonização capitalista, de que são elementos estruturais a
burocracia, a cultura do terror, a cultura do espectáculo, a alienação, a
civilização do consumo… E no fim fica como que a pairar sobre a elaboração de
um sonho a confissão aforística de uma dor íntima:
A FOSSA
As minhas
certezas comem dúvidas ao pequeno-almoço. E há dias em que me sinto estrangeiro
em Montevieu ou em qualquer outro lugar. Nesses dias, dias sem sol, noites sem
lua, nenhum lugar é o meu lugar e não consigo reconhecer-me em nada nem em
ninguém. As palavras não se assemelham ao que nomeiam e nem sequer se
assemelham ao seu próprio som. Então, não estou onde estou. Deixo o meu corpo e
parto para longe, para lugar nenhum, e não quero estar com ninguém, nem sequer
comigo, e não tenho, nem quero ter, nome nenhum: então, perco a vontade de
chamar-me ou de ser chamado.
Eduardo Galeano, in O Livro dos Abraços, trad. Helena
Pitta, Antígona, Março de 2018, p. 169.
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