segunda-feira, 7 de maio de 2018

UM POEMA DE GOLGONA ANGHEL

AGORA QUE NADA MAIS IMPORTA,
consolamos as tardes de Domingo
com as bifanas das tasquinhas montadas antes do jogo,
alguns boatos frescos, discussões sobre Sartre,
o pós-estruturalismo e essa piada
que qualquer marxista parolo
parece esperto ao pé de um anarquista.
O único interesse que ainda temos realmente em comum
é dividir o aluguer
e uma garrafa de tinto.
Às vezes, ainda recebemos algum convite,
e olha, não é fácil, com o miúdo e tal.
Mas acabamos por ficar em casa.

O desinteresse acumula-se à minha volta
como as camadas seculares
no tronco de um sequóia. 
Fico imune a queixinhas.
Lavo sozinho a minha roupa.
A minha língua está a ganhar uma espessura lenhosa.
No lugar do grito,
uma greta.
Mãos nos bolsos,
bico calado.
Evito vitrinas e espelhos.
Tenho medo que a verdade
me possa desfigurar o rosto.


Golgona Anghel (n. 1979, Iliria Oriental, Roménia), in Como uma flor de plástico na montra de um talho, Assírio & Alvim, Maio de 2013, pp. 53-54.

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