Apropriando-se de uma passagem bíblica, Pieter Bruegel, o
Velho, pintou em 1568 A Parábola dos Cegos. Guiados por um cego, vários outros
cegos são encaminhados para o abismo. A cova ou vala para onde caminham pode
tanto ser uma representação da morte como do absurdo existencial daquelas
figuras distorcidas. Os especialistas falam geralmente e eufemisticamente de
humor negro a propósito desta representação, mas observando o mundo à nossa
volta ela surge-nos como sendo de um naturalismo desconcertante. Os cegos são
uma generalização da humanidade, o fim para que tendem é o efeito natural de
serem guiados por quem não vê o abismo iminente. Impossível ser mais realista. Passados
450 anos sobre esta representação de uma alegoria bíblica o sentido permanece
intacto, facto comprovável tanto pela cegueira humana generalizada como pela
particular cegueira dos grandes líderes mundiais. Uma cegueira intelectual,
moral, racional, dificilmente discutível.
Também a poesia, em certos casos, assimila
os mais sórdidos dados da realidade destilando-os em versos onde a natureza do
mundo se confunde com uma parábola. Tomemos de exemplo dois livros de dois
poetas contemporâneos, distintos na forma e no estilo mas próximos nessa
capacidade de detonar os males do mundo através da palavra. Antro, de Rui Baião
(n. 1953), abre-nos literalmente a porta do abismo. A própria palavra do título
pode confundir-se com a cova ou vala para que tendem todos os homens,
representados na capa com uma fotografia de Paulo Nozolino que é em si mesma
uma significação antropológica da existência. Representação
derradeira da morte, a caveira, que no nosso imaginário infantil surge como símbolo
de pirataria, pode ainda ser uma transfiguração literal do mal, do perigo, da
letalidade das substâncias venenosas. Curioso que Pena de Morte, de Jorge
Aguiar Oliveira (n. 1956), abra justamente com um conjunto de poemas cujos
títulos remetem para um contraste entre a natureza, nomeada a partir de
diversas espécies de cactos, e venenos que tanto podem ser compostos químicos
tóxicos (batracotoxina, amatoxina, sarin…) como vícios humanos (avareza, ódio,
mentira…).
Elemento curativo ou tóxico, o que importa aqui realçar é essa
coincidência da morte surgir representada simbolicamente nos dois livros através
de uma ideia de veneno enquanto consequência da acção do mundo sobre o homem e
vice-versa. Ou seja, a toxicidade inerente ao mundo produz no homem
consequências que, paradoxalmente, resultam da própria acção humana nesse mesmo
mundo. Como os cegos que se deixam guiar por um cego para o abismo, o homem
permite-se intoxicar pelo veneno que espalha na atmosfera que o envolve. A
poesia de Rui Baião realça tais impurezas fazendo uso de uma linguagem
estilhaçada que transforma o poema num corpo ferido. Nada é óbvio, excepto a
ferida exposta que o poema exibe perante o leitor. O retrato possível não é
figurado nem figurativo, adquire antes uma estranha dimensão orgânica que se
assemelha a vidro quebrado sobre o qual o leitor caminha deixando atrás seu rastro de sangue. De vez em quando somos surpreendidos por uma aparente
coloquialidade que logo é desmentida pela infidelidade ao sentido, com o qual
Rui Baião não parece minimamente preocupado. Este constrói-se juntando
estilhaços, superando hiatos, elipses, aceitando a sintaxe rigorosamente
desrespeitada pelo jogo das aliterações, pelas arritmias, pelas dissonâncias.
«A que asas me dão azo, esses olhos / rasos d’água?», questiona-se a certa
altura. A resposta está na força de ideias que se repetem em palavras que intensificam
o tom: ira, fúria, nojo, escombros, podre, loucura. Para no último poema se
concluir: «Polidas, só as pedras dos túmulos» (p. 88).
Identicamente rugosa é a
linguagem de Pena de Morte, embora Jorge Aguiar Oliveira opte amiúde por um tom mais declarativo da actualidade. Ainda que alguns poemas devessem ter
sido sujeitos a uma revisão mais rigorosa, há momentos no conjunto intitulado
Sem Dó Nem Piedade que respondem de modo bastante assertivo a uma das problemáticas
políticas mais prementes do nosso tempo. A guerra, o terrorismo, a realidade
dos refugiados, surde em versos cáusticos que não afastam de todo a poesia das
podridões do mundo: «cortaram a língua à irmã / da criança morta / e a música
trauteada por si anos a fio / ficou apodrecendo na masmorra / da caveira» (p.
54). Antro (Averno, Outubro de 2017) e Pena de Morte (Companhia das Ilhas,
Fevereiro de 2018) não são livros para estômagos sensíveis, não pretendem
cativar leitores com placebos líricos. São livros que expõem os venenos do
mundo, as feridas da humanidade, sem esperarem qualquer retorno catártico ou
convalescente.
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