Há dias sugeri um livro sobre Nelson Mandela a uma cliente, a
qual me respondeu que nunca gostou de Nelson Mandela porque, e passo a citar, “se
um homem vai preso, por alguma razão é”. Não vale a pena reproduzir a conversa,
que acabou com uma declaração reveladora: “Não sei se estamos melhor do que
quando havia escravatura, ainda há tanta escravatura”. Portugal está cheio de
gente que pensa assim, ao mesmo tempo que exibe vidas aparentemente felizes nas
redes sociais e partilha citações do Chagas Freitas, do Minh’alma, do
Noite-Luar, com a mesma ligeireza que se dedica aos recortes de Fernando Pessoa.
Nos
tempos de Cavaco, aceitámos de mão estendida subsídios de toda a ordem para
investirmos em jipes. Lá para Pedrogão parece — repito e sublinho: parece — que nem a
tragédia imbuiu de moral ou simples vergonha algumas das nossas gentes. As trafulhices com apoios, provindos da tão celebrada generosidade portuguesa, serviram para transformar em casas
o que antes dos fogos eram ruínas. Também há quem volte a falar de uma
repovoação de jipes novinhos em folha pelas freguesias afectadas. Somos generosos a dar,
humildes a receber, mas estupidamente imorais a investir. Perdoem-me a
generalização os que discordarem do aforismo.
Povo ingovernável, diziam os
romanos. Talvez tivessem razão. Nesta época de manuais escolares o que mais
ouço são queixas. Mesmo quando os manuais até ao sexto ano passam a ser
oferecidos, escuto desconfianças. Oferecidos para serem devolvidos? Ninguém dá
nada a ninguém. Esta é a máxima preferida dos portugueses. Ninguém dá nada a
ninguém porque aquele que recebe fica a sentir-se em dívida, não há o culto do
saber associado ao investimento. É tudo pequeno comércio, permuta, a nossa
capacidade de raciocínio social ainda está ao nível do escambo. Depois somos
roubados na factura da luz, do gás, da água, no preço da gasolina, na
roubalheira dos manuais escolares e sentimo-nos desarmados. Mais facilmente nos
indignamos e organizamos e protestamos por sportingues e benficas do que por
estas questões que dizem respeito à vida de todos. É um mal social evidente, um
cancro, uma peste, uma cárie.
A notícia reproduzida acima serve apenas de
exemplo, mais um exemplo, de como somos ingovernáveis, incapazes de olhar para
o futuro sem recebermos o fruto imediato da perspectiva. Só vemos um palmo à
frente dos olhos, quando vemos, porque para lá do horizonte ninguém consegue
vislumbrar puto. A imaginação foi comida pelo tártaro, abstracção não temos, há
muito que nos extraíram os dentes da imaginação, espírito crítico foi pelo
esgoto, cuspido, escarrado, depois de bochecharmos com as águas do
desenrascanço e da chico-espertice. Dinheiro para os caracóis e para a imperial
não há-de faltar, 'tá-se bem.
8 comentários:
Mas o senhor Henrique continua a ser escravo. Em parte o cliente tem razão.
Deixa-te dessas merdas que ninguém te ouve :) .. O fascínio do ser português pelo lugar-comum é imutável. O espírito do estado novo não se apagará nem com 100 anos de democracia...
Mas faço a minha vénia à inteligência do antónio costa. Foi o primeiro primeiro-ministro - que possa ser chamado assim - que percebeu com exactidão as linhas com que este povo se coze. Não será suficiente para ganhar o meu voto mas percebeu com clarividência as manhas destas alminhas à beira-mar plantadas. Tenta, com as limitações impostas por uma solução governativa de recurso (que tem vantagens e inconvenientes como tudo na vida..) precaver algum futuro sustentando o inócuo presente da nação alicerçado nessa aparição religiosa do turismo. Aliás, uma das suas principais falhas que visiono até ao momento é não ter resolvido o problema do aeroporto. Já gastamos milhões em estudos disto e daquilo e os turistas começam a fugir porque não têm espaço para aterrar na terra do sol, do presidente marcelo, da gastronomia, do bom vinho e da sã convivência...
O resto fica para os sempre astutos e atentos Tavares desta vida...
Já dizias o mesmo acerca do Sócrates, e aposto que votaste nele em alguma circunstância.
Anónimo, qual é a parte em que o cliente tem razão? (Escravo sou da paciência que tenho para certas parvoíces, ainda assim cedo à curiosidade de entendê-lo)
Gostei da provocação. Nunca votei no sócrates mas continuo a achar que o seu primeiro mandato ao nível dos resultados e das políticas iniciadas foi dos melhorzinhos que a democracia portuguesa já viu... ;) e, eu que nunca voto, fui votar no costa naquela coisa das primárias aberta à população em geral... Mas acho que me fiquei por aí.
Sendo que a minha mãe votou no sócrates, mais que uma vez até, e os teus pais provavelmente também... Talvez ajude :) a explicar um pouco da coisa...
Os meus pais? Esses votavam PS nem que o candidato fosse... o Sócrates. :-)
Voto sempre porque houve quem lutasse para que eu pudesse votar. Não voto é declaradamente em ninguém grande parte das vezes, quase nunca. Por isso voto branco.
Os teus pais e a minha mãe e a populaça no geral escolhem há décadas sempre os mesmos para os governar, oscila, ou com D ou sem D.. Portugal é dos poucos países da europa onde não existe espaço para novas alternativas governativas. Até podia correr mal, não sabemos.. Daí a actual solução de governo ter sido uma lufada de ar fresco que até pode continuar, apesar das excepcionais circunstâncias em que ocorreu onde não houve grande expressão eleitoral para os partidos ditos mais pequenos. Isso diz tudo acerca do conservadorismo plantado que passa de pais para filhos com a agravante dos filhos ainda viverem mais alienados da realidade circundante, infestados que estão pelas novas formas de comunicação... O País evoluiu na democracia de forma simplesmente aparente através dum progresso enganador. O resto - o essencial, diga-se - está tudo mais ou menos na mesma. E se pensarmos bem, isto já vinha tudo escarrapachado nas conversas em família do outro marcelo. Estava lá tudo. Os protagonistas é que entretanto mudaram...
Provavelmente terão de lá voltar. Mais vale não ir!
Tristeza.
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