domingo, 22 de julho de 2018

DENTADURA À PORTUGUESA



Há dias sugeri um livro sobre Nelson Mandela a uma cliente, a qual me respondeu que nunca gostou de Nelson Mandela porque, e passo a citar, “se um homem vai preso, por alguma razão é”. Não vale a pena reproduzir a conversa, que acabou com uma declaração reveladora: “Não sei se estamos melhor do que quando havia escravatura, ainda há tanta escravatura”. Portugal está cheio de gente que pensa assim, ao mesmo tempo que exibe vidas aparentemente felizes nas redes sociais e partilha citações do Chagas Freitas, do Minh’alma, do Noite-Luar, com a mesma ligeireza que se dedica aos recortes de Fernando Pessoa. 
   Nos tempos de Cavaco, aceitámos de mão estendida subsídios de toda a ordem para investirmos em jipes. Lá para Pedrogão parece repito e sublinho: parece — que nem a tragédia imbuiu de moral ou simples vergonha algumas das nossas gentes. As trafulhices com apoios, provindos da tão celebrada generosidade portuguesa, serviram para transformar em casas o que antes dos fogos eram ruínas. Também há quem volte a falar de uma repovoação de jipes novinhos em folha pelas freguesias afectadas. Somos generosos a dar, humildes a receber, mas estupidamente imorais a investir. Perdoem-me a generalização os que discordarem do aforismo. 
   Povo ingovernável, diziam os romanos. Talvez tivessem razão. Nesta época de manuais escolares o que mais ouço são queixas. Mesmo quando os manuais até ao sexto ano passam a ser oferecidos, escuto desconfianças. Oferecidos para serem devolvidos? Ninguém dá nada a ninguém. Esta é a máxima preferida dos portugueses. Ninguém dá nada a ninguém porque aquele que recebe fica a sentir-se em dívida, não há o culto do saber associado ao investimento. É tudo pequeno comércio, permuta, a nossa capacidade de raciocínio social ainda está ao nível do escambo. Depois somos roubados na factura da luz, do gás, da água, no preço da gasolina, na roubalheira dos manuais escolares e sentimo-nos desarmados. Mais facilmente nos indignamos e organizamos e protestamos por sportingues e benficas do que por estas questões que dizem respeito à vida de todos. É um mal social evidente, um cancro, uma peste, uma cárie. 
   A notícia reproduzida acima serve apenas de exemplo, mais um exemplo, de como somos ingovernáveis, incapazes de olhar para o futuro sem recebermos o fruto imediato da perspectiva. Só vemos um palmo à frente dos olhos, quando vemos, porque para lá do horizonte ninguém consegue vislumbrar puto. A imaginação foi comida pelo tártaro, abstracção não temos, há muito que nos extraíram os dentes da imaginação, espírito crítico foi pelo esgoto, cuspido, escarrado, depois de bochecharmos com as águas do desenrascanço e da chico-espertice. Dinheiro para os caracóis e para a imperial não há-de faltar, 'tá-se bem.

8 comentários:

Anónimo disse...

Mas o senhor Henrique continua a ser escravo. Em parte o cliente tem razão.

rff disse...

Deixa-te dessas merdas que ninguém te ouve :) .. O fascínio do ser português pelo lugar-comum é imutável. O espírito do estado novo não se apagará nem com 100 anos de democracia...
Mas faço a minha vénia à inteligência do antónio costa. Foi o primeiro primeiro-ministro - que possa ser chamado assim - que percebeu com exactidão as linhas com que este povo se coze. Não será suficiente para ganhar o meu voto mas percebeu com clarividência as manhas destas alminhas à beira-mar plantadas. Tenta, com as limitações impostas por uma solução governativa de recurso (que tem vantagens e inconvenientes como tudo na vida..) precaver algum futuro sustentando o inócuo presente da nação alicerçado nessa aparição religiosa do turismo. Aliás, uma das suas principais falhas que visiono até ao momento é não ter resolvido o problema do aeroporto. Já gastamos milhões em estudos disto e daquilo e os turistas começam a fugir porque não têm espaço para aterrar na terra do sol, do presidente marcelo, da gastronomia, do bom vinho e da sã convivência...
O resto fica para os sempre astutos e atentos Tavares desta vida...

hmbf disse...

Já dizias o mesmo acerca do Sócrates, e aposto que votaste nele em alguma circunstância.

hmbf disse...

Anónimo, qual é a parte em que o cliente tem razão? (Escravo sou da paciência que tenho para certas parvoíces, ainda assim cedo à curiosidade de entendê-lo)

rff disse...

Gostei da provocação. Nunca votei no sócrates mas continuo a achar que o seu primeiro mandato ao nível dos resultados e das políticas iniciadas foi dos melhorzinhos que a democracia portuguesa já viu... ;) e, eu que nunca voto, fui votar no costa naquela coisa das primárias aberta à população em geral... Mas acho que me fiquei por aí.
Sendo que a minha mãe votou no sócrates, mais que uma vez até, e os teus pais provavelmente também... Talvez ajude :) a explicar um pouco da coisa...

hmbf disse...

Os meus pais? Esses votavam PS nem que o candidato fosse... o Sócrates. :-)

rff disse...

Voto sempre porque houve quem lutasse para que eu pudesse votar. Não voto é declaradamente em ninguém grande parte das vezes, quase nunca. Por isso voto branco.
Os teus pais e a minha mãe e a populaça no geral escolhem há décadas sempre os mesmos para os governar, oscila, ou com D ou sem D.. Portugal é dos poucos países da europa onde não existe espaço para novas alternativas governativas. Até podia correr mal, não sabemos.. Daí a actual solução de governo ter sido uma lufada de ar fresco que até pode continuar, apesar das excepcionais circunstâncias em que ocorreu onde não houve grande expressão eleitoral para os partidos ditos mais pequenos. Isso diz tudo acerca do conservadorismo plantado que passa de pais para filhos com a agravante dos filhos ainda viverem mais alienados da realidade circundante, infestados que estão pelas novas formas de comunicação... O País evoluiu na democracia de forma simplesmente aparente através dum progresso enganador. O resto - o essencial, diga-se - está tudo mais ou menos na mesma. E se pensarmos bem, isto já vinha tudo escarrapachado nas conversas em família do outro marcelo. Estava lá tudo. Os protagonistas é que entretanto mudaram...

Anónimo disse...

Provavelmente terão de lá voltar. Mais vale não ir!
Tristeza.