sexta-feira, 13 de julho de 2018

PREFÁCIO INVOLUNTÁRIO

Lembremos a desalmada promessa de Sataspe, sobrinho do imperador persa Xerxes. Sataspe, acusado de violação da filha do general do reino, foi condenado a ser empalado. Na aflição, a sua mãe propôs ao seu irmão imperador um castigo alternativo: que Sataspe fizesse uma viagem à Líbia (assim se designava África naquele tempo) e redigisse, no regresso, um relatório.
   O estremecimento de Sataspe não foi pequeno: viajar para além do conhecido e trasladar o visto em palavras? Será possível nomear o desconhecido, descrever sem um modelo preexistente? Sataspe, por exclusiva fidelidade à mãe, prometeu mundos e fundos e partiu. Mas rapidamente foi tomado pelo pânico e regressou. Preferiu ser empalado.
(...)
   Tanta conversa fiada para explicar que, ao contrário do que julgam todas as professoras primárias e as esposas dos senhores secretários de estado, o poeta não é o homem mais sensível mas aquele que consegue distanciar-se até poder falar por palavras que lhe sejam próprias (Rafael Argullol). O que o coloca num patamar de solidão danada, que não é para quem quer mas para quem pode. Por isso amiúde se matam, ou se embebedam, ou enlouquecem sem remissão tantos poetas. O equilíbrio não é fácil e a poesia não é, lamento desiludir-vos, um jogo de sociedade. É antes a aventura de Sataspe a sós com o seu medo, o seu deslumbramento e busca de uma forma para nomear o desconhecido. Daí que a poesia não se agradeça.

António Cabrita, in Para Que Servem os Elevadores e outras indagações literárias, Alcance Editores, Maputo, Setembro de 2012, p. 61-65. Respigo a citação no ensaio Como se desmama o crocodilo?, 7 cartas a um jovem poeta que deviam ser de leitura obrigatória em todas as escolas onde a poesia for tema. Leio-as e identifico-me com elas, aproprio-me delas e penso como dariam um belo prefácio involuntário para o meu livro Suicidas. Título péssimo, que deveria antes ter sido, não fosse a ausência de perspectiva, o segundo de três com o título Estranhas Criaturas. Foram publicados o primeiro e o segundo, o terceiro mantém-se inédito. O resto deixo ao cuidado dos curiosos que queiram espreitar em Ruy Belo o Breve Programa Para Uma Iniciação ao Canto, que não enjeita a sensibilidade do poeta. Contextualiza-a. 

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