sexta-feira, 13 de julho de 2018

UM POEMA DE MIGUEL MARTINS

Os grandes desafios são dois: largar o balastro,
o sentimento; viver do ar. Isto, para quem queira
sobrevoar as coisas do mundo, ter a justa medida
de pessoas e bens, do abandono a que foram votados
sete dias de criação inspirada, demasiado lírica,
demasiado épica, demasiado multicolor para o daltónico
organismo humano, nuns casos feito para mandar,
noutros para obedecer. Que ora imagina impérios,
ora se contenta em alimentar pombos junto ao adro
da igreja, onde foram velados os relutantes avós
de uns e outros. Mas um balão a gás é um artefacto
mais ou menos indomável, e do glórico trajecto tentativo,
em geral, já só sobram destroços, quando é chegada a hora
de autopsiar o corte entre vida e loucura. As testemunhas,
poucas, ou pouco disponíveis, referirão o ego,
a óbvia propensão para o escaparate, os anemómetros
(que mais não são que cata-ventos de última geração)
e, para finalizar, algum talento na desusada arte
da arte desusada. E di-lo-ão de pés bem cravados na terra
e municiadas de éticas e conceitos e jovens tradições
indesmontáveis ou apenas recorrendo a alguma força,
martelos, alicates e chaves sextavadas.


Miguel Martins, in Pince-Nez, Douda Correria, Novembro de 2016, s/p.

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