O EU
É pequeno e invisível como os grilos
em Agosto. Gosta de fantasiar e mascarar,
como todos os anões. Mora entre
blocos de granito, entre verdades
prestáveis. Cabe até sob um
penso, sob uma venda. Não o encontrarão
os funcionários da alfândega nem os seus belos cães. Entre
hinos, entre alianças, esconde-se o eu.
Acampa nas Montanhas Rochosas do crânio.
Eterno fugitivo. Ele é eu próprio e eu
estou nele com a temerosa esperança de que finalmente
tenha encontrado um verdadeiro amigo. Mas ele
é solitário, tão desconfiado, não
aceita ninguém, nem a mim.
Adere aos acontecimentos históricos
como a água ao copo.
Poder-se-ia encher com ele uma jarra do neolítico.
É insaciável, quer fluir
por aquedutos, tem sede de vasos cada vez mais novos.
Quer saborear um espaço sem paredes,
difundir-se, difundir. Depois desaparece,
como o desejo, e no silêncio duma noite
de Agosto a única coisa que se consegue ouvir é a paciente
conversa dos grilos com as estrelas.
Adam Zagajewski (n. Lviv, Ucrânia, 21 de Junho de 1945), in Sombras de Sombras, trad. Marco Bruno, rev. Jorge Sousa Braga, Tinta-da-China, Novembro de 2017, p. 43.
Sem comentários:
Enviar um comentário