terça-feira, 14 de agosto de 2018

TRÊS NOVELAS DE JAIME ROCHA



   Jaime Rocha (n. 1949), pseudónimo de Rui Ferreira de Sousa, começou por publicar poesia ainda na década de 1970. A primeira obra de ficção surgiu em 1984, com o título Tonho e as Almas. Nessa obra fomos apresentados a uma paisagem que acompanhará grande parte da obra subsequente, paisagem claramente relacionada com as origens nazarenas do autor, preenchida por barcos, pescadores, o mar em pano de fundo, falésias e até, em certos momentos, um linguajar típico da região. Mas esta fixação geográfica e social é apenas cenário para realidades psicológicas mais profundas e menos naturalistas. Não é raro as narrativas de Jaime Rocha enveredarem por ambientes típicos da literatura fantástica, com personagens perseguidas por traumas, sonhos, alucinações, fantasmas, delírios. Títulos como A Loucura Branca (1.º edição, 1990) e A Rapariga Sem Carne (Relógio D’Água, Novembro de 2012) apontam claramente nessa direcção, quer pela sugestão patológica da palavra loucura, quer pela impressão fantasmagórica da imagem de uma rapariga sem carne.
   No posfácio de António Cabrita que acompanha a 3.ª edição de A Loucura Branca (Relógio D’Água, Maio de 2014) lê-se que «a escrita de Jaime Rocha é a de quem anda pelas ruas com a cabeça submersa nos rumores do mundo, nas suas dimensões dúplices, ocultas, cifradas, afastando da sua frente, com gestos de nadador, as cortinas do aparente» (p. 88). Este exercício de andar pelas ruas é, antes de mais, uma característica das personagens. Nota-se especialmente em A Rapariga Sem Carne, com Mateus a deixar dentro de casa o corpo de uma mulher estranha, ali instalada de um modo enigmático, enquanto sai e observa as ruas da cidade onde vive: «Pela rua fora, pessoas vestidas de escuro espalham-se e desaparecem dentro dos carros ou entram nos pequenos cafés. Há cães a urinar nos pneus dos carros e sacos de plástico a esvoaçar pelas bermas» (p. 17). A cidade de A Rapariga sem Carne não é muito diferente da vila de Escola de Náufragos (Relógio D’Água, Março de 2016), ainda que entre ambas exista um óbvio distanciamento no tempo e no espaço. Também aí uma criança chamada Mateus anda pelas ruas a espalhar seu olhar demoníaco, enquanto dentro de casa os mistérios da família, os segredos, as ocultações, preparam o terreno da tragédia.
   O facto de tanto em A Rapariga sem Carne como em Escola de Náufragos a personagem central se chamar Mateus permite-nos supor um elo entre as duas narrativas. Não poderá o Mateus de A Rapariga sem Carne ser a versão adulta do rapaz que aprendeu a ser homem na Escola de Náufragos? Se optarmos por uma interpretação menos literal da palavra naufrágio, que surge nestas obras em contexto distinto, vislumbramos nestas histórias de cariz fantástico uma concepção da natureza humana que aponta para a ideia de queda. A criança de Escola de Náufragos está num processo de iniciação, o qual se desenrola através de gestos violentos, crimes, injustiças. Somos levados a pensar mais numa ética do mal do que do bem. A loucura já não é um estado iminente, é a normalidade da qual dificilmente se escapa. Neste sentido, a casa, entendida enquanto refúgio doméstico, está ausente na vida destas personagens. A casa é uma armadilha de fantasmas e de alucinações, como fica óbvio em A Rapariga sem Carne; a casa é um antro de segredos e de obscuridades, de sombras que se intrometem no pensamento. Daí que, em Escola de Náufragos, a avó de Mateus o aconselhe: «Agora vai-te embora, vai para a rua que a casa faz-te mal» (p. 31).
   No entanto, o mundo doentio da casa, do refúgio, do covil, não encontra solução na rua. As personagens saem, caminham, observam, como que arejam, mas não se resolvem. A rua oferece-lhes um mundo que não as resgata da loucura. Com uma estrutura mais complexa, A Loucura Branca também coloca a sua personagem central frente ao mar. Mas esta experiencia o trauma do suicídio de um amigo: «mato-me porque não aguento ver aquilo em que os outros se tornaram» (p. 11). O naufrágio tem aqui uma essência dúplice: é o daqueles que sucumbem à realidade e é o daqueles que, não sucumbindo à realidade, como que se alienam dela e são declarados loucos. A primeira razão do suicídio não é alguém não aguentar a sua vida, mas antes o efeito que a observação da vida dos outros tem na sua própria vida. Loucos porque deprimidos, stressados, esgotados, angustiados, ou, como no caso de José Lúcio, porque perseguidos por sonhos aterradores. Em A Loucura Branca, Jaime Rocha desloca-nos para um universo onírico. Também nesse pesadelo a casa surge como lugar desconfortável, decorado sem gosto, e a rua é lugar do imprevisível, do desconhecido: «Saiu apressado como se fosse cumprir uma tarefa importante, mas, na realidade, não sabia aonde se dirigia, nem em que dia exactamente estava em relação ao tempo que o médico fixara para a cura do tumor» (p. 38).
   Destas três novelas, com seus pesadelos, enxurradas, naufrágios, conservamos o desconforto das personagens. Em nenhuma situação elas aparecem instaladas, integradas. Há um conflito latente entre as suas personalidades e o mundo envolvente, o qual surge representado sob a forma trágica da queda. O pânico do alucinado só recupera tranquilidade quando reencontra a sua alucinação. O imaterial, o irreal, o sonho, oferece-lhe um sentido que a realidade usurpa. A realidade tem os traços da desolação, é o beco onde todos os males e todos os desastres se consumam. José Lúcio descobre que odeia a mulher quando ela se recusa ouvir-lhe a descrição dos pesadelos. A sua mulher já não é a que sai para ir às compras com os filhos, mas sim a mulher de pele dourada e olhos azuis que lhe aparece nos sonhos. Ele separou-se da realidade, casou-se com um fantasma, com uma alucinação, com uma ideia. Ao saírem para a rua, em boa verdade, estas personagens afundam-se cada vez mais em si mesmas. Por isso são náufragos, cada vez mais imersos nas profundezas do desconhecido que habita todos nós. É como se a rua fosse o mar onde o náufrago se afundou. É como se a casa fosse o barco à deriva num beco maligno. O exterior onde se movimentam corresponde, paradoxalmente, ao interior de que estão cativas. Não foi este o percurso traçado pelos românticos do século XIX? E não foi esse o caminho onde a determinada altura desabrochou toda a grande literatura fantástica?

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