Yasunari Kawabata (n. 1899 – m. 1972) foi criado pelos
avós, depois de perder os pais quando contava apenas quatro anos de idade.
Passados dez anos, perdeu os avós. Acabou num internato. Foi aí que decidiu ser
escritor, embora a pintura tenha sido a primeira paixão. Terra de Neve (D.
Quixote, trad. Armando da Silva Carvalho) foi o seu primeiro romance, publicado
por fascículos entre 1935 e 1947. É hoje considerado uma obra-prima. O romance
coloca em cena a relação entre um homem da cidade e uma jovem gueixa. Shimamura
gosta de se refugiar na montanha, longe da agitação da capital e da família. É nesse
lugar de isolamento que conhece Komako, ao abrigo da multidão: «Shimamura pensa
na Terra de Neve, na sua frialdade. Mas descobre nela qualquer coisa de
ardente» (p. 45). A relação que se estabelece entre ambos não é a típica
relação de um homem com uma gueixa. Shimamura interessa-se por Komako, de quem
se diz ter-se tornado gueixa profissional para poder pagar despesas com
remédios do noivo. Ela nega-o. «Shimamura sentia-se cada vez mais desolado,
miserável, oprimido, vencido pela inutilidade e pelo vazio absurdo» (p. 67). Só
a imagem de Komako o anima, longe da cidade, numa solidão íntima partilhada,
sem público, longe das complicações da vida quotidiana, familiar.
A paisagem, neste romance, não é
apenas cenário. Há entre as descrições da natureza e estas duas personagens uma
espécie de fusão, Shimamura e Komako são uma extensão da solidão das montanhas,
reflectem a vontade selvagem do «valezinho, apertado entre a massa dos montes
cobertos de neve» (p. 85). Não há-de ser por acaso que, no final, Shimamura se
funde com a Via Láctea. Mas já lá vamos.
Osamu Dazai (n. 1909 – m. 1948) é o pseudónimo de Shūji
Tsushima. Nascido e criado numa família numerosa, desde cedo se interessou pela
literatura. Ryūnosuke Akutagawa (n. 1892 – m. 1927), de quem se diz ser o pai
da short story japonesa, era o seu ídolo. Suicidou-se com apenas 35 anos de
idade. Dazai seguir-lhe-á o exemplo, depois de incursões pelo marxismo, pelas
drogas, pelas prostitutas (não necessariamente por esta ordem). Em 1929 tentou suicidar-se pela primeira vez, em
1930 fugiu com uma gueixa e foi deserdado pela família, tentou suicidar-se
novamente, foi preso por se envolver com o Partido Comunista Japonês, e por aí
adiante...
Quem leia o belíssimo romance Não-Humano (Cavalo de Ferro, trad. Ana
Neto) aperceber-se-á do estilo autobiográfico. Dazai coloca-se no papel de
personagem, disfarçando-o com ligeiros estratagemas técnicos. Mas rapidamente entendemos
que o ser angustiado, deprimido, saturado, melancólico, solitário, do livro tem
tudo que ver com a criança adoentada, filha de uma família rica, que foi Shūji
Tsushima. Entendemos também uma revolta típica para com a sua condição social,
o desconforto perante as raízes, uma declarada incompreensão do ser-se humano. Osamu
Dazai não se reconhece no outro, recusa imitá-lo, não se quer único porque
sabe-se único, excluído pela sua própria excepcionalidade. Observa os seres
humanos à sua volta e não os compreende, teme-os, julga o convívio com os
outros insuportável, aliena-se através do consumo de drogas, adopta uma vida
licenciosa: «álcool, tabaco e prostitutas eram um excelente meio de dissipar
(mesmo que só por breves momentos) o meu medo dos humanos» (p. 44).
Sentindo-se
excluído socialmente desde que nasceu, a sua maior tragédia será a farsa em que
procurará sobreviver. Não é como o homem da cidade que se refugia nas montanhas
em busca de solidão, se deslumbra com uma gueixa com quem trai a família
deixada para trás. Toda a sua vida é uma hesitação entre a decisão de fugir e
de se matar, não havendo qualquer diferença entre ambas. O que ele detesta nas
pessoas é a hipocrisia, a contradição em que vivem, mas não enjeita fazer de
palhaço para alcançar os seus objectivos. É um não-humano extraordinariamente humano, diríamos. Ama uma mulher com quem tenta suicidar-se. Ela morre, ele escapa: «De
todas as pessoas que conheci, aquela miserável Tsuneko foi mesmo a única que
amei» (p. 64). O que o faz ser assim? Por que rejeita o amor dos outros? Por
que é incapaz de os amar? Lá iremos.
Yukio Mishima (n. 1925 – m. 1970) foi tudo o que um escritor
pode ser. É difícil de imaginar o que poderia andar pela cabeça deste génio que
nunca deixou de exibir o seu talento sob diversas formas. Confissões de uma
Máscara (Assírio & Alvim, trad. António Mega Ferreira) não desfaz as
dúvidas, como, de resto, o título previne. É uma máscara quem se confessa, não
um rosto. Ainda assim, julgo podermos confiar em parte da história. O
livro como que expõe a homossexualidade do autor, dos primeiros sinais, por
assim dizer, à «expressão da necessidade de afirmar a minha verdadeira
natureza» (p. 35). Mishima passeia-nos pelos anos da infância, partilha
fantasias, penetra territórios heterodoxos, como sejam os da masturbação a
contemplar uma reprodução de S. Sebastião. Sexo e violência são os ingredientes
que tem para nos oferecer, tal como eles desabrocham na adolescência e por
vezes se retratam na vida adulta. Não há recalcamentos na exposição dos
pormenores. A tentação declarada do suicídio, a paixão infeliz por um rapaz, as
erecções, o ciúme, os atalhos para a solidão.
Curioso como tanto em Kawabata, como
em Dazai e Mishima, a palavra solidão surja como uma espécie de estado
interior, íntimo, uma fatalidade inerente ao ser. Certo que no primeiro a
solidão é procurada no refúgio da montanha, mas, em boa verdade, não é a
solidão que se procura, ela simplesmente transporta a sua presa ao lugar que
lhe convém. Em Dazai, a solidão como que estabelece entre o eu e o outro um
muro intransponível. Em Mishima ela surge do desconforto de uma sexualidade proibida. No final, fica
sempre a imagem dos outros como o inferno que leva ao isolamento. Shimamura e
Komako são arrastados pela multidão durante um incêndio, são espezinhados pela
multidão, é a multidão quem os afasta, quem lhes impede o amor, numa alegoria
do amor impossibilitado pelas convenções sociais. Yozo, o alter-ego de Dazai a quem se atribui a autoria dos
cadernos de memórias reunidos sob o título Não-Humano, olha para a sociedade
como para um indivíduo ameaçador, oceano revolto onde o ser naufraga. As
aparências matam-no, as evidências levam-no ao isolamento. «Indigno de ser
humano. / Deixara então de ser um humano» (p. 127).
E Mishima? Tenta enganar-se
com Sonoko, na companhia de quem se isola dos outros. Mas é tudo engano. A
máscara o confessa: «tornei-me um daqueles seres que só conseguem acreditar nas
falsas aparências» (p. 123). E com isto sofre, porque também ele se sente condenado
à autodestruição. A obrigação de amar aniquila-o, também ele pensa em fugir,
todos pensam fugir. De quê? Da sociedade. Da mentira. E é ele quem o afirma,
embora pudesse ser outro qualquer: «De súbito, senti essa dor aguda que nos vem
depois de fixarmos demasiado tempo o mesmo objecto. Esta dor proclamava: «Não
és humano. És um ser incapaz de relações sociais. És apenas uma criatura
desumana e, em certo sentido, estranhamente patética» (p. 178).
Yasunari Kawabata ganhou o Prémio Nobel em 1968. Em 1972,
suicidou-se. Há quem diga que foi acidente. Há quem aponte como razões para o feito
uma relação amorosa ilícita, o choque após a notícia do suicídio de Yukio Mishima.
Este não deixa dúvidas: seppuku. Dazai desapareceu nas águas do rio Tamagawa.
Levou consigo Tomie Yamazaki, amante à época. Não-Humano foi o seu último
livro.
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