sábado, 1 de setembro de 2018

MANUAIS ESCOLARES


   Por mais tempo que trabalhe numa livraria, jamais conseguirei compreender a relação paranóica dos encarregados de educação com a aquisição de manuais escolares. Antes de mais, não entendo sequer a necessidade dos manuais escolares. Num país onde meio mundo se indigna por dá cá aquela palha, é estranho que não exista um movimento associativo forte (de encarregados de educação, professores, etc) que se oponha veementemente à aquisição de manuais escolares a cada novo ano lectivo. Fala-se no peso nas carteiras das famílias, eufemismo para roubo autêntico. Um roubo que tem na sua origem um Estado fraco, incapaz de fazer frente à influência dos grandes grupos editoriais. 
   Os manuais escolares nãos servem para nada, facilmente seriam substituídos por sebentas iguais para todas as escolas. Que existam professores que não sabem trabalhar sem recorrerem aos manuais também diz muito do estado do nosso ensino. O problema começa precisamente aqui, mas estende-se e complexifica-se. Obrigadas a adquirir a porcaria dos manuais, muitas pessoas surgem aos balcões frustradas, vão gastar um dinheiro que não queriam gastar. Apanha-se de tudo, sendo que aquilo que mais se apanha é o cliente apressado. A pressa na aquisição dos livros é um mistério que não entendo senão aceitando a tese de que os portugueses são particularmente masoquistas. Sucede que muitas vezes as pressas redundam em precipitação. Quando assim é, depois de terem aceitado um contrato de compra em que são informadas de que os manuais não estão sujeitos a trocas ou devoluções, há inúmeros encarregados de educação que nos abordam com a intenção de desfazer esse contrato. Muitas vezes com a desfaçatez do chico-esperto que se defende argumentando que não tinha sido informado, quando a informação está toda ao dispor e é passada no acto da encomenda. Ou porque alguém lhes ofereceu os livros, ou porque os viram à venda num qualquer sítio online com preços mais acessíveis, ou porque foram informados da oferta por escolas, freguesias, municípios, surgem-nos com a intenção de desfazer o que foram eles que quiseram fazer antes de todos os outros. 
   O mais grave, porém, não é este tipo de minudências. É mesmo o sinal de desresponsabilização que sucessivamente recebemos de uma sociedade civil que ou anda a dormir ou não quer saber se anda acordada ou simplesmente enferma de estupidez generalizada. Desde gente que não sabe o ano escolar dos filhos, a gente que não sabe o nome das escolas que os filhos frequentam, e exigem que sejam os vendedores de manuais a sabê-lo, porque esses estão obrigados a saber tudo, são omniscientes e devem assumir pelos papás a responsabilidade que os papás não têm, é um ver se te avias. Há deles revoltados que chegam a ser cómicos: querem que o mundo seja à sua imagem e semelhança, não aceitam nem compreendem um não, procuram fintar regras que nem estão dispostos a conhecer.
   Há dias, a propósito de vouchers oferecidos pelo Ministério da Educação, uma senhora dizia-me que só utilizaria os vouchers se lhe garantissem que os livros vinham novos, pois jamais aceitaria que a filha andasse na escola com livros usados. Perguntei-lhe se sabia que os livros tinham de ser devolvidos no final do ano para que outros meninos depois os pudessem utilizar. Disse-me que sim. E perguntei: acha que os meninos que vão usar posteriormente os livros que a sua filha usou devem fazê-lo? Respondeu-me que não era com ela, cada um sabe de si. E o Estado sabe de todos. Estou para ver no que vai dar este presente (envenenado?) dos manuais trocados por vouchers. Menos despesas na educação significam mais IRS, sendo que no final os livros têm de ser devolvidos em condições às escolas. E se não forem? As escolas cobram aos pais o valor dos mesmos? Conseguem imaginar no que isto vai dar?... 
   Toda esta comédia é trágica e facilmente se ultrapassaria, para isso bastando que o Estado não baixasse as calças sucessivamente ao lobby de grupos empresariais que facturam milhões, crescendo de ano para ano à custa do sufoco de uma sociedade que lhes é servil. Tão servil que não se contenta com os manuais, acrescenta-lhes livros de preparação para testes, exames, livros de trabalhos para casa, uma parafernália de livros de apoio escolar absolutamente inúteis. Sou de uma geração em que nada disso existia, ou pelo menos eu não conheci nada disso. Andamos a sobrecarregar os miúdos com testes, preparações, exames, vão todos ficar com cabeça de equação e coração de teorema. Gerações de tecnocratas preparados para servir e perpetuar a engrenagem do império editorial.

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