domingo, 26 de agosto de 2018

LA MALICIOSA


A montanha acompanha-me
como um guia a um cego.
As águas correm num nível baixo
e nada se banha nelas.
A montanha, tal como eu,
aparece e desaparece,
provoca os meus sentidos
e prova a minha distracção.
O manto silvestre é cinzento
e verde de silêncio.
A natureza diz mais sobre mim
do que qualquer coisa que eu possa dizer.
A ausência de pessoas dignifica a paisagem,
vence a história sem medo.
Vim aqui para respirar
dou graças por ter sobrevivido.
A montanha abraça-me,
sem que eu pense que o tempo vai acabar
e começar noutro lugar
menos fértil para os meus sentimentos.
A minha vida casa com a paisagem
feita de pedra e vegetação.
Não preciso que nada mais me convença
do resto ser pura desilusão. 



Marta Chaves (n. 1978), in Varanda de Inverno (Assírio & Alvim, Abril de 2018). Poemas curtos, brevíssimos, por vezes monásticos, noutras ocasiões a lembrarem formas orientais tais como a do haiku, a poesia waka e kanshi. Amiudadamente dirigidos a uma segunda pessoa, nunca concretizam a índole do destinatário. Preferem os espaços em branco como pontuações da ausência, a qual encontra no silêncio seu parceiro ideal. Resvalando por vezes para o aforismo, os poemas de Marta Chaves são fragmentários, questionam a fé, ironizam a realidade, fazem tema da solidão e do absurdo existencial. Um bom exemplo desta capacidade de síntese é o poema intitulado Banquete: «Sento-me sozinha à mesa / e obrigo-me a pensar no absurdo. // Não faço perguntas. / Elas sentam-se a meu lado, / com um à-vontade cruel». O exercício declarado é de procura, a busca de uma iluminação que alivie o ser dos absurdos e dos vazios. Aliviar do vazio preenchendo o silêncio com palavras, eis uma arte poética que traz à superfície as contradições próprias da poesia. Da melancolia nunca escapamos.

1 comentário:

manuel a. domingos disse...

Gosto muito da poesia dela. Acompanho-a desde o início.