Os números foram oferecidos por António Cabrita logo no
início do ensaio intitulado “Que histórias conta o ouriço à baleia?”:
Shakespeare utilizou 30000 palavras na sua obra, Camilo chegou às 18000, agora
não se passa das 4000. E pergunta: Para que serve melhorar a nossa competência
lexical e linguística? E responde: para ampliar a nossa liberdade. A conclusão
é discutível, podia ser objecto das mais inesperadas contestações. Sei de
tipos com o vocabulário reduzido muito mais livres, pelo menos em aparência,
que certos dicionários ambulantes. Não quero ir por aí. Parece-me antes óbvio
que o nosso mundo encurtou-se com a caída em desuso de inúmeras palavras, ficou mais ínfimo e previsível, ficou tudo mais claustrofóbico. Apercebemo-nos
disso quando relemos um clássico como O Malhadinhas. A Bertrand reeditou-o
recentemente, acompanhado de Mina de Diamantes (como acontece desde 1958), mas
enriquecido pelo prefácio de Maria Alzira Seixo e as ilustrações de Bernardo Marques.
Sobre esta questão da linguagem, Alzira Seixo refere a riqueza do vocabulário
sublinhando que «Aquilino usa o léxico da fala popular, e de teor
disfemístico», «fortalecida pela hipérbole, a ironia e a sinédoque,
nomeadamente na referência levemente mordaz e risonha feita à religião».
Levemente é como quem diz. Quem tenha lido o exame de consciência, porque é
disso que se trata, do António Malhadas de Barrelas, que por acaso é palavra
que pode significar limpeza da reputação que ficou manchada, aperceber-se-á
facilmente da relação conflituosa com a religião que o texto exprime. É certo
que no final o Malhadinhas se assemelha a um beato, prestes a meter um pé no
paraíso enquanto mantém outro no Inferno. Mas é tudo oportunismo, ou melhor,
sentido de oportunidade.
Bom de faca, mulherengo, destemido, dito de língua
afiada, o almocreve é figurão humorístico que permite «pôr vulto no mundo» dos
humildes, dos campesinos, das gentes votadas ao esquecimento. Desconfia do progresso
por nele não compreender mudanças de monta, olha para o passado com
indisfarçável nostalgia, mas o que mais se lhe destaca é a coragem de levar
avante a sua própria vida, quer raptando a mulher com quem acabou por ter uma caterva
de filhos, quer travando-se de razões com os agentes de uma justiça que ele não
reconhece. Nisto se projecta, talvez, o anarquismo do autor, expulso do
Seminário em 1904, preso em 1907 por conspirar contra a Monarquia, clandestino no
seu próprio país, exilado lá fora…
O Malhadinhas data de 1922, e dele, que não
por acaso tem nome de quem troça ou sova, retenho com maior vivacidade aquela
alegoria exemplar do capítulo IX, o da viagem de burro, debaixo de neve, na
companhia do Fr. Joaquim das Sete Dores. Entre sermões jamais esquecidos, o de
uma conformidade com a existência que não os livraria da ameaça de uma
alcateia. Contra os lobos não valeram preces como terá valido a sabedoria
popular, mas mais que esta o que valeu às presas foram mesmo os asnos que
acertaram no caminho debaixo de um nevão que tudo cegava. Elogio da natureza?
Por certo. Já que a fé que salva não é a dos livros nem a das leis vendidas
pela igreja, mas a do instinto puro, animal.
O que tem Diamantino Dores, dito Dedê, que
ver com António Malhadas? É difícil de entender. Aquilino diz que juntou as
duas novelas por haver entre ambas coincidências de clima. Emigrado no Brasil,
Dedê regressa à aldeia natal 25 anos depois de haver partido. Ainda que por cá
ninguém o saiba, foge das ameaças de um marido traído. Por cá é recebido com
todos os encómios devidos a um filho da terra que prosperou lá fora, ainda que
de verdade a prosperidade seja apenas aparência. E Dedê, sabichão, vale-se
disso, usa e manipula a seu bem-querer as ilusões da parvónia, a ingenuidade
dos meias solas. Mulherengo, desbaratador, o Diamantino dos diamantes não
passava, em boa verdade, de um empregado menor, fiscal das obras, administrador
de secção na prefeitura do Rio. Mas quem o sabia? Em Chambão das Maias, aldeia miserável
das Beiras, a pomposidade da recepção disfarçaria a miséria das gentes:
«— Está
tudo na mesma. Saí daqui ontem!» (p. 177)
É o nosso herói quem o declara,
aprontando das suas, aproveitando-se dos coitados que se desfaziam em
vontades perante sua senhoria, até perceber que por mais esmolas que desse não remediaria
o «panorama social português»: «gente assim primária», «pateguinhas pobres e
cobiçosas». «Com uma bolsa de dólares comprava-se esta terreola toda, almas e
corpos» (p. 226) Diamantino denota uma sobranceria que não reconhecemos no
Malhadinhas, embora este, à sua maneira, também fique sempre por cima. O que os
aproxima não é de carácter, é de sociologia. No teatro da vida, tudo neles
é representação e fantasia excepto o risco de viver. Um mais rústico, outro
mais finório, são ambos retratos de um país arrebatado na casa de penhores da moral
vigente. Um país com mais palavras do que as que hoje têm uso.
2 comentários:
Olá,
Onde é leu que Camilo tinha um vocabulário de 18.000 palavras?
"Os números foram oferecidos por António Cabrita logo no início do ensaio intitulado “Que histórias conta o ouriço à baleia?”: Shakespeare utilizou 30000 palavras na sua obra, Camilo chegou às 18000, agora não se passa das 4000."
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