segunda-feira, 27 de agosto de 2018

O MALHADINHAS


Os números foram oferecidos por António Cabrita logo no início do ensaio intitulado “Que histórias conta o ouriço à baleia?”: Shakespeare utilizou 30000 palavras na sua obra, Camilo chegou às 18000, agora não se passa das 4000. E pergunta: Para que serve melhorar a nossa competência lexical e linguística? E responde: para ampliar a nossa liberdade. A conclusão é discutível, podia ser objecto das mais inesperadas contestações. Sei de tipos com o vocabulário reduzido muito mais livres, pelo menos em aparência, que certos dicionários ambulantes. Não quero ir por aí. Parece-me antes óbvio que o nosso mundo encurtou-se com a caída em desuso de inúmeras palavras, ficou mais ínfimo e previsível, ficou tudo mais claustrofóbico. Apercebemo-nos disso quando relemos um clássico como O Malhadinhas. A Bertrand reeditou-o recentemente, acompanhado de Mina de Diamantes (como acontece desde 1958), mas enriquecido pelo prefácio de Maria Alzira Seixo e as ilustrações de Bernardo Marques. Sobre esta questão da linguagem, Alzira Seixo refere a riqueza do vocabulário sublinhando que «Aquilino usa o léxico da fala popular, e de teor disfemístico», «fortalecida pela hipérbole, a ironia e a sinédoque, nomeadamente na referência levemente mordaz e risonha feita à religião». Levemente é como quem diz. Quem tenha lido o exame de consciência, porque é disso que se trata, do António Malhadas de Barrelas, que por acaso é palavra que pode significar limpeza da reputação que ficou manchada, aperceber-se-á facilmente da relação conflituosa com a religião que o texto exprime. É certo que no final o Malhadinhas se assemelha a um beato, prestes a meter um pé no paraíso enquanto mantém outro no Inferno. Mas é tudo oportunismo, ou melhor, sentido de oportunidade.
   Bom de faca, mulherengo, destemido, dito de língua afiada, o almocreve é figurão humorístico que permite «pôr vulto no mundo» dos humildes, dos campesinos, das gentes votadas ao esquecimento. Desconfia do progresso por nele não compreender mudanças de monta, olha para o passado com indisfarçável nostalgia, mas o que mais se lhe destaca é a coragem de levar avante a sua própria vida, quer raptando a mulher com quem acabou por ter uma caterva de filhos, quer travando-se de razões com os agentes de uma justiça que ele não reconhece. Nisto se projecta, talvez, o anarquismo do autor, expulso do Seminário em 1904, preso em 1907 por conspirar contra a Monarquia, clandestino no seu próprio país, exilado lá fora…
   O Malhadinhas data de 1922, e dele, que não por acaso tem nome de quem troça ou sova, retenho com maior vivacidade aquela alegoria exemplar do capítulo IX, o da viagem de burro, debaixo de neve, na companhia do Fr. Joaquim das Sete Dores. Entre sermões jamais esquecidos, o de uma conformidade com a existência que não os livraria da ameaça de uma alcateia. Contra os lobos não valeram preces como terá valido a sabedoria popular, mas mais que esta o que valeu às presas foram mesmo os asnos que acertaram no caminho debaixo de um nevão que tudo cegava. Elogio da natureza? Por certo. Já que a fé que salva não é a dos livros nem a das leis vendidas pela igreja, mas a do instinto puro, animal. 
   O que tem Diamantino Dores, dito Dedê, que ver com António Malhadas? É difícil de entender. Aquilino diz que juntou as duas novelas por haver entre ambas coincidências de clima. Emigrado no Brasil, Dedê regressa à aldeia natal 25 anos depois de haver partido. Ainda que por cá ninguém o saiba, foge das ameaças de um marido traído. Por cá é recebido com todos os encómios devidos a um filho da terra que prosperou lá fora, ainda que de verdade a prosperidade seja apenas aparência. E Dedê, sabichão, vale-se disso, usa e manipula a seu bem-querer as ilusões da parvónia, a ingenuidade dos meias solas. Mulherengo, desbaratador, o Diamantino dos diamantes não passava, em boa verdade, de um empregado menor, fiscal das obras, administrador de secção na prefeitura do Rio. Mas quem o sabia? Em Chambão das Maias, aldeia miserável das Beiras, a pomposidade da recepção disfarçaria a miséria das gentes: 
   «— Está tudo na mesma. Saí daqui ontem!» (p. 177) 
   É o nosso herói quem o declara, aprontando das suas, aproveitando-se dos coitados que se desfaziam em vontades perante sua senhoria, até perceber que por mais esmolas que desse não remediaria o «panorama social português»: «gente assim primária», «pateguinhas pobres e cobiçosas». «Com uma bolsa de dólares comprava-se esta terreola toda, almas e corpos» (p. 226) Diamantino denota uma sobranceria que não reconhecemos no Malhadinhas, embora este, à sua maneira, também fique sempre por cima. O que os aproxima não é de carácter, é  de sociologia. No teatro da vida, tudo neles é representação e fantasia excepto o risco de viver. Um mais rústico, outro mais finório, são ambos retratos de um país arrebatado na casa de penhores da moral vigente. Um país com mais palavras do que as que hoje têm uso.

2 comentários:

Luís disse...

Olá,

Onde é leu que Camilo tinha um vocabulário de 18.000 palavras?

hmbf disse...

"Os números foram oferecidos por António Cabrita logo no início do ensaio intitulado “Que histórias conta o ouriço à baleia?”: Shakespeare utilizou 30000 palavras na sua obra, Camilo chegou às 18000, agora não se passa das 4000."