sábado, 29 de setembro de 2018

GRAÇA


do monte agudo ao da graça
espera-te uma lisboa emudecida

das asas guardas o desejo
és um anjo caído demasiadas vezes

sentas-te no banco onde já tantos
souberam nada aguardar da vida

quando cá chegares do telhado
desta bebedeira ofereço-te o funâmbulo

gato passeando-se ao de lá da vista
um outro cais e a onda nele aportando

o coração a ser partido quando o amor
parte do coração a quem se ofertou

não leves o tempo até à tua morte
a morte pode levar-te antes do tempo


Fernando Machado Silva (n. 1979), in O Coração Estendido Pela Cidade (Gato Bravo, 2017). Estreado em 2012, mantém desde o início em todos os seus livros uma relação forte com o conceito de viagem. A sua poesia, podemos dizê-lo, apropria-se da transitoriedade que define deslocações nos espaços geográfico e íntimo, fixando-a num “mapa afectivo” onde se elencam cidades, lugares, suas características e particularidades. A memória é ainda aqui a de haver passado por um lugar e dele ter guardado uma experiência, geralmente associada a disposições sentimentais que trazem na origem relações amorosas. Há uma dimensão ensaística nestes poemas que não pode ser negligenciada, até pelo percurso académico de um autor que junta no currículo estudos de teatro, literatura, poesia, filosofia. O movimento de quem se desloca no espaço marca o ritmo dos poemas, ora mais curtos, ora mais longos, sempre expurgados de pontuação, desafiando convenções sintácticas e oferecendo às palavras combinações ricas nas suas dimensões plástica e rítmica.

Sem comentários: