Numa nota final pode ler-se que Théodore Fraenckel nasceu
em 1900 e faleceu a 3 de Julho de 1950, salientando-se a dispersão do espólio
poético e a obscuridade do autor. Não passará despercebido, porém, um
poema como The World in his arms (1952). Trata-se do filme de Raoul Walsh, estreado
dois anos depois da morte do autor do poema. Outro, intitulado A queda do
Império Romano, remete para o filme de Anthony Mann estreado em 1964. Como
poderia alguém falecido em 1950 assinar um poema sobre um filme de 1964? Fica denunciada
a natureza literária deste Théodore Fraenckel, heterónimo por detrás do qual se
esconde o autor de Iluminuras (Douda Correria, Julho de 2018).
A relação desta
poesia com o cinema é óbvia, nomeadamente se atendermos aos poemas supracitados.
Joseph L. Mankiewicz é outro dos cineastas aludidos, num poema, intitulado A
batalha de Ácio, que muito provavelmente remete para uma das mais famosas
sequências do filme Cleópatra (1963). O cinema surge neste contexto como estímulo
à reflexão, é a tela a partir da qual uma realidade interior se desenvolve. Representação sugestiva da realidade, o cinema proporciona uma reflexão sobre reflexos. A
dimensão introspectiva dos poemas não os aliena de um exterior observável,
mas reformula a noção de realidade ao fantasiar a existência. Enquanto
construção mental, o ser de Théodore Fraenckel esvai-se na matéria textual dos
poemas. Estes instauram uma ruptura com o estado físico das coisas, questionam
a natureza de “estados poéticos” (ver poema Telefones brancos), mas geram um
mundo de ficções no interior do qual é possível sentir a textura da matéria.
Assim mesmo arriscamos ler um poema como este:
Colorado
céus claros de western
Colorado foi durante muito tempo a terra que habitei.
Parado nos seus grandes canyons aprendi, lentamente,
o sentido da austeridade e da raiva.
Compreendi, comovido, o encanto de pequeníssimas e
efémeras
gigantes flores de cacto:
flores de cores muito pálidas e róseas,
por vezes quase brancas (como nenúfares) —
ou aniladas (tal uma asa de pomba suja de sangue
ao ser ferida).
O vento do deserto rasgava-me as veias. Áspero.
No Verão, durante muitas noites, sem em nada acreditar,
da minha solidão vi-me assim esquecido…
Mais uma vez, a proximidade com o imaginário
cinematográfico permite transpor as barreiras do realismo. As “iluminuras”,
porém, não são iluminações no sentido que lhes foi conferido por Rimbaud. Estas
iluminuras estão mais próximas dos “movimentos no escuro” (título de um
livro de José Miguel Silva que tem o cinema por leitmotiv) que permitem iludir
a solidão e a ausência de fé, são instantes de suspensão na relação com o mundo
existencial. Aos clássicos vai também o autor colher matéria para o ofício,
rematando em tom aforístico sobre as consequências da escrita. Do diálogo com
William Blake conclui: «Entusiasmando-me com o processo de feitura da
iluminura, / mais do que aos materiais e da pintura ao estilo rigoroso / é ao
Imaginário dela solto que dedico o olhar mais atento. / Que tal tenha sido um
dia possível, o que depreendo? / Que é escrevendo contra o estilo do momento /
que do sentido da Era mais nos irmanamos, por dentro» (Sobre o Ícone de uma igreja polaca). O que depreende o
leitor é precisamente essa escrita contra o estilo do momento, seja ele actual
ou o da época em que se diz ter vivido Théodore Fraenckel. Momento é, neste
sentido, cápsula do tempo, momento pode ser a Grécia antiga no modo como a vamos
construindo no nosso Imaginário pessoal e colectivo, pode ser a Roma de Marco
António recriada numa tela de cinema, pode ser uma leitura de Petrarca ou a
audição de música barroca.
Exemplos não faltarão a quem pretende ler esta
poesia à luz de uma alegoria do imaginário, a qual reforça o carácter determinante
deste na construção da realidade. Qual o lugar do sujeito neste processo, eis o
que nos diz o poema: «No interior da construção, ambígua, / do que sem
convicção ainda denomino / por sentimento, considero-me o desperdício / daquilo
contra o que escrevo» (Um toast pelos lanceiros da Índia). Mais reflexiva e
filosófica do que sentimental, esta poesia não deixa de sopesar ambas as
dimensões do poema. Quando o tema central parece ser a morte, e tantas vezes
assim é, a meditação dá lugar à melancolia, mas logo desta surde a iluminura
que sobrepõe o subjectivo ao objectivo, o ambíguo ao concreto, o imaginário ao
factual: «Decerto X. ainda não percebeu, apesar da doença, / que a morte e a
vida / não passam de uma quimera, xadrez — / abstractas ilusões de
consistência nenhuma» (Elegia).
Este livro, até na coerente disparidade dos
poemas que reúne, é uma das boas surpresas do momento poético actualmente
vivido no nosso país. Não por acaso digo momento, pois apenas por acaso este
livro é desta actualidade. Toda a sua construção pressupõe já um outro tempo,
vindo de um nada herdado, tendendo para um nada destinado a correr
como um rio: «indiferente a tudo / incontido e limpo» (Der Letzte Mann).
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