sexta-feira, 28 de setembro de 2018

ILUMINURAS


Numa nota final pode ler-se que Théodore Fraenckel nasceu em 1900 e faleceu a 3 de Julho de 1950, salientando-se a dispersão do espólio poético e a obscuridade do autor. Não passará despercebido, porém, um poema como The World in his arms (1952). Trata-se do filme de Raoul Walsh, estreado dois anos depois da morte do autor do poema. Outro, intitulado A queda do Império Romano, remete para o filme de Anthony Mann estreado em 1964. Como poderia alguém falecido em 1950 assinar um poema sobre um filme de 1964? Fica denunciada a natureza literária deste Théodore Fraenckel, heterónimo por detrás do qual se esconde o autor de Iluminuras (Douda Correria, Julho de 2018).
A relação desta poesia com o cinema é óbvia, nomeadamente se atendermos aos poemas supracitados. Joseph L. Mankiewicz é outro dos cineastas aludidos, num poema, intitulado A batalha de Ácio, que muito provavelmente remete para uma das mais famosas sequências do filme Cleópatra (1963). O cinema surge neste contexto como estímulo à reflexão, é a tela a partir da qual uma realidade interior se desenvolve. Representação sugestiva da realidade, o cinema proporciona uma reflexão sobre reflexos. A dimensão introspectiva dos poemas não os aliena de um exterior observável, mas reformula a noção de realidade ao fantasiar a existência. Enquanto construção mental, o ser de Théodore Fraenckel esvai-se na matéria textual dos poemas. Estes instauram uma ruptura com o estado físico das coisas, questionam a natureza de “estados poéticos” (ver poema Telefones brancos), mas geram um mundo de ficções no interior do qual é possível sentir a textura da matéria. Assim mesmo arriscamos ler um poema como este:

Colorado
céus claros de western

Colorado foi durante muito tempo a terra que habitei.
Parado nos seus grandes canyons aprendi, lentamente,
o sentido da austeridade e da raiva.
Compreendi, comovido, o encanto de pequeníssimas e efémeras
gigantes flores de cacto:
flores de cores muito pálidas e róseas,
por vezes quase brancas (como nenúfares)
ou aniladas (tal uma asa de pomba suja de sangue
ao ser ferida).
O vento do deserto rasgava-me as veias. Áspero.
No Verão, durante muitas noites, sem em nada acreditar,
da minha solidão vi-me assim esquecido…

Mais uma vez, a proximidade com o imaginário cinematográfico permite transpor as barreiras do realismo. As “iluminuras”, porém, não são iluminações no sentido que lhes foi conferido por Rimbaud. Estas iluminuras estão mais próximas dos “movimentos no escuro” (título de um livro de José Miguel Silva que tem o cinema por leitmotiv) que permitem iludir a solidão e a ausência de fé, são instantes de suspensão na relação com o mundo existencial. Aos clássicos vai também o autor colher matéria para o ofício, rematando em tom aforístico sobre as consequências da escrita. Do diálogo com William Blake conclui: «Entusiasmando-me com o processo de feitura da iluminura, / mais do que aos materiais e da pintura ao estilo rigoroso / é ao Imaginário dela solto que dedico o olhar mais atento. / Que tal tenha sido um dia possível, o que depreendo? / Que é escrevendo contra o estilo do momento / que do sentido da Era mais nos irmanamos, por dentro» (Sobre o Ícone de uma igreja polaca). O que depreende o leitor é precisamente essa escrita contra o estilo do momento, seja ele actual ou o da época em que se diz ter vivido Théodore Fraenckel. Momento é, neste sentido, cápsula do tempo, momento pode ser a Grécia antiga no modo como a vamos construindo no nosso Imaginário pessoal e colectivo, pode ser a Roma de Marco António recriada numa tela de cinema, pode ser uma leitura de Petrarca ou a audição de música barroca. 
Exemplos não faltarão a quem pretende ler esta poesia à luz de uma alegoria do imaginário, a qual reforça o carácter determinante deste na construção da realidade. Qual o lugar do sujeito neste processo, eis o que nos diz o poema: «No interior da construção, ambígua, / do que sem convicção ainda denomino / por sentimento, considero-me o desperdício / daquilo contra o que escrevo» (Um toast pelos lanceiros da Índia). Mais reflexiva e filosófica do que sentimental, esta poesia não deixa de sopesar ambas as dimensões do poema. Quando o tema central parece ser a morte, e tantas vezes assim é, a meditação dá lugar à melancolia, mas logo desta surde a iluminura que sobrepõe o subjectivo ao objectivo, o ambíguo ao concreto, o imaginário ao factual: «Decerto X. ainda não percebeu, apesar da doença, / que a morte e a vida / não passam de uma quimera, xadrez / abstractas ilusões de consistência nenhuma» (Elegia). 
Este livro, até na coerente disparidade dos poemas que reúne, é uma das boas surpresas do momento poético actualmente vivido no nosso país. Não por acaso digo momento, pois apenas por acaso este livro é desta actualidade. Toda a sua construção pressupõe já um outro tempo, vindo de um nada herdado, tendendo para um nada destinado a correr como um rio: «indiferente a tudo / incontido e limpo» (Der Letzte Mann).

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