Após a publicação de Sumo de Limão — Silva de Versos
(frenesi, Setembro de 2017), em edição conjunta de que demos conta aqui, Paulo
da Costa Domingos (n. 1953) regressa com duas plaquettes vindas a lume com
poucos meses de diferença: Jocasta (frenesi, Maio de 2018) e dizimar (frenesi,
Agosto de 2018). A primeira, tendo como figura central uma personagem mitológica,
inicia com o poema intitulado O Verbo Se Fez Carne. Anteriormente publicado na
revista Cão Celeste, este poema indica-nos logo no título uma perspectiva
cosmogónica que o léxico dos versos confirma. De um modo irónico, o sopro da
criação é desmontado pela vontade de questionar o lugar da mulher na
história do mundo. A última estrofe não deixa dúvidas quanto à vertente
heterodoxa do poema: «Quem regressa do vale / e seus olhos viram / coisas nunca
vistas, / só lhe diz ser altura / de soprar menos» (p. 5).
A convocação de Jocasta, de certo modo explicada em nota
marginal, leva a um questionamento da historiografia burocrática. Se é pacífico
ter sido Sófocles quem, entre os poetas trágicos, mais se esforçou por oferecer
à mulher um primeiro plano na significação das dores humanas, não tão pacífico
será sobrepor a relevância de Jocasta a Antígona neste domínio. De facto, se um
dos principais conflitos na tragédia de Sófocles é aquele que opõe a lei do
Estado ao direito familiar, Jocasta foi estupidamente secundada por quem sempre
preferiu relevar o papel desobediente de Antígona. Afinal, é a mãe de Antígona,
nascida de uma relação incestuosa, quem melhor poderá simbolizar posteriormente uma crítica da
estrutura base das sociedades judaico-cristãs. Jocasta que se desfez de um
filho, pedindo que o matassem, para acabar posteriormente casada com ele, dele
tendo filhos, acabará por se suicidar, enforcando-se no quarto: «Voraz,
absoluta entrega e / único feminismo sem o sofisma / do horror aos trilhos do
coração, / nasce de si mesma: carnívora, / nuamente infame como feixe / d’espinhos
coroando a Natureza» (p. 10).
Este hino orquestrado por Paulo da Costa Domingos
concorda com o que conhecemos da sua poesia anterior pela sobreposição dos
valores do corpo às leis morais impostas por forças externas à consciência
individual, num epicurismo anárquico que não prescinde de sobrelevar o
indivíduo a uma qualquer ideia de Estado. Do mesmo modo, no conjunto intitulado
dizimar, verbo com conotações etimológicas também elas apelando a certa noção
de tragédia humana, o indivíduo surge colocado na posição do condenado que o
carrasco se presta a executar. Neste caso, o carrasco tanto pode ser uma ideia
de cidade (malha urbana) como os «urbanistas com seus compassos» (p. 11): «¿Que
posso eu dizer-vos?... / Que esta maneira de civilização / pinga como uma
torneira lassa, / e o seu laço nos estrangula» (p. 5). Quem acaba estrangulado
é o rebelde, vítima da normalização que tudo higieniza, tornando a paisagem
asséptica, amorfa, monótona, sufocante. A própria poesia acaba posta em causa
neste cenário de desolação: «Desta rebeldia / com véus que encobrem a raiva / e o desespero» (p. 9).
O espectáculo entristecedor das sociedades de consumo,
eufemismo para sociedades autodestrutivas, tem também no centro do seu imenso palco
aqueles que se lhe opõem, por vezes perdidos em labirintos de consciência,
outras vezes vitimados pelo sufoco a que são sujeitos pelos algozes da
normalização. O poeta é uma dessas figuras, não apenas por insistir na prática
de uma arte antiprodutiva, logo desconsiderada como esperdício excessivo, mas
sobretudo por na sua zona restrita se manter fiel a um propósito antigo, que já
vem dos tempos de Jocasta, o de desviar da lógica idealista todos quantos
prefiram o veneno do sonho erótico ao veneno do sacrifício redentor. Neste
contexto, a poesia de Paulo da Costa Domingos pode também ser lida como
esconjuração, grito de rebeldia, espécie de exorcismo proferido contra todas as
forças que se oponham à liberdade individual, à autoconsciência, aos prazeres
de um corpo que é garantia de estarmos vivos:
¡Vai embora! ¡Larga-nos!,
larga o teu inimigo.
Teu ganho e nossa perda
já mal se distinguem.
Na desolação dos oásis as bocas
abrem-se e são grutas em f’rida.
Solidão de vozes gastas
no sussurro conspirativo.
¡Nem na noite há refúgio!
¡Larga!, larga o teu inimigo.
Fatiga, a luta, e ainda
não chegou o pavor.
Certo. Teremos bebido;
muito menos que mentiras
dizem os poetas durante
uma greve selvagem.
Resta referir, até por respeito a velhas cumplicidades
que nestas coisas são o que mais conta, que a capa de Jocasta tem na sua origem
uma fotografia de Rui Baião. E de Carlos Ferreiro é a ilustração na capa de
dizimar.
1 comentário:
Grande abraço do PCD
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