sábado, 15 de setembro de 2018

JOCASTA & DIZIMAR



   Após a publicação de Sumo de Limão — Silva de Versos (frenesi, Setembro de 2017), em edição conjunta de que demos conta aqui, Paulo da Costa Domingos (n. 1953) regressa com duas plaquettes vindas a lume com poucos meses de diferença: Jocasta (frenesi, Maio de 2018) e dizimar (frenesi, Agosto de 2018). A primeira, tendo como figura central uma personagem mitológica, inicia com o poema intitulado O Verbo Se Fez Carne. Anteriormente publicado na revista Cão Celeste, este poema indica-nos logo no título uma perspectiva cosmogónica que o léxico dos versos confirma. De um modo irónico, o sopro da criação é desmontado pela vontade de questionar o lugar da mulher na história do mundo. A última estrofe não deixa dúvidas quanto à vertente heterodoxa do poema: «Quem regressa do vale / e seus olhos viram / coisas nunca vistas, / só lhe diz ser altura / de soprar menos» (p. 5).
   A convocação de Jocasta, de certo modo explicada em nota marginal, leva a um questionamento da historiografia burocrática. Se é pacífico ter sido Sófocles quem, entre os poetas trágicos, mais se esforçou por oferecer à mulher um primeiro plano na significação das dores humanas, não tão pacífico será sobrepor a relevância de Jocasta a Antígona neste domínio. De facto, se um dos principais conflitos na tragédia de Sófocles é aquele que opõe a lei do Estado ao direito familiar, Jocasta foi estupidamente secundada por quem sempre preferiu relevar o papel desobediente de Antígona. Afinal, é a mãe de Antígona, nascida de uma relação incestuosa, quem melhor poderá simbolizar posteriormente uma crítica da estrutura base das sociedades judaico-cristãs. Jocasta que se desfez de um filho, pedindo que o matassem, para acabar posteriormente casada com ele, dele tendo filhos, acabará por se suicidar, enforcando-se no quarto: «Voraz, absoluta entrega e / único feminismo sem o sofisma / do horror aos trilhos do coração, / nasce de si mesma: carnívora, / nuamente infame como feixe / d’espinhos coroando a Natureza» (p. 10).
   Este hino orquestrado por Paulo da Costa Domingos concorda com o que conhecemos da sua poesia anterior pela sobreposição dos valores do corpo às leis morais impostas por forças externas à consciência individual, num epicurismo anárquico que não prescinde de sobrelevar o indivíduo a uma qualquer ideia de Estado. Do mesmo modo, no conjunto intitulado dizimar, verbo com conotações etimológicas também elas apelando a certa noção de tragédia humana, o indivíduo surge colocado na posição do condenado que o carrasco se presta a executar. Neste caso, o carrasco tanto pode ser uma ideia de cidade (malha urbana) como os «urbanistas com seus compassos» (p. 11): «¿Que posso eu dizer-vos?... / Que esta maneira de civilização / pinga como uma torneira lassa, / e o seu laço nos estrangula» (p. 5). Quem acaba estrangulado é o rebelde, vítima da normalização que tudo higieniza, tornando a paisagem asséptica, amorfa, monótona, sufocante. A própria poesia acaba posta em causa neste cenário de desolação: «Desta rebeldia / com véus  que encobrem a raiva / e o desespero» (p. 9).
   O espectáculo entristecedor das sociedades de consumo, eufemismo para sociedades autodestrutivas, tem também no centro do seu imenso palco aqueles que se lhe opõem, por vezes perdidos em labirintos de consciência, outras vezes vitimados pelo sufoco a que são sujeitos pelos algozes da normalização. O poeta é uma dessas figuras, não apenas por insistir na prática de uma arte antiprodutiva, logo desconsiderada como esperdício excessivo, mas sobretudo por na sua zona restrita se manter fiel a um propósito antigo, que já vem dos tempos de Jocasta, o de desviar da lógica idealista todos quantos prefiram o veneno do sonho erótico ao veneno do sacrifício redentor. Neste contexto, a poesia de Paulo da Costa Domingos pode também ser lida como esconjuração, grito de rebeldia, espécie de exorcismo proferido contra todas as forças que se oponham à liberdade individual, à autoconsciência, aos prazeres de um corpo que é garantia de estarmos vivos:

¡Vai embora! ¡Larga-nos!,
larga o teu inimigo.

Teu ganho e nossa perda
já mal se distinguem.

Na desolação dos oásis as bocas
abrem-se e são grutas em f’rida.

Solidão de vozes gastas
no sussurro conspirativo.

¡Nem na noite há refúgio!
¡Larga!, larga o teu inimigo.

Fatiga, a luta, e ainda
não chegou o pavor.

Certo. Teremos bebido;
muito menos que mentiras

dizem os poetas durante
uma greve selvagem.

Resta referir, até por respeito a velhas cumplicidades que nestas coisas são o que mais conta, que a capa de Jocasta tem na sua origem uma fotografia de Rui Baião. E de Carlos Ferreiro é a ilustração na capa de dizimar.

1 comentário:

PCD disse...

Grande abraço do PCD