quarta-feira, 3 de outubro de 2018

A PAIXÃO SEGUNDO JOÃO DE DEUS


Como não raramente acontece com os melhores, o cineasta João César Monteiro (1939-2003) há-de ficar na memória colectiva dos portugueses pelas razões mais caricatas. Aquele tipo que fez um filme sem imagens e, em dia de estreia, respondeu a uma jornalista que o abordava: “eu quero que o público português se foda”; esse tipo era João César Monteiro, autor de uma trilogia que ofereceu ao cinema português a mais singular das suas personagens. João de Deus começou por aparecer em Recordações da Casa Amarela (1989), anti-herói de uma Lisboa melancólica com suas gentes a fazerem pela vidinha. Solitário, (des)enrascado, metido em estratagemas de duvidosa índole moral, depravado com a tara de coleccionador de pentelhos. O facto de o próprio João César Monteiro interpretar este João de Deus confere à personagem a dimensão de alter-ego, leitura alternativa a uma talvez mais metafísica hipótese de ser João de Deus o filho do criador que na terra se entrega às coisas do Diabo. Espécie de Fausto, portanto, este João de Deus reaparecido em A Comédia de Deus (1995) e As Bodas de Deus (1999).
O escritor António Cabrita (1959), cuja relação com o cinema vem de há muito, nomeadamente enquanto crítico, resolveu ressuscitar João de Deus com propósitos previamente declarados: «treino para afeiçoar a mão ao fôlego do romance» (p. 8). Tomara a muitos tais treinos. A Paixão Segundo João de Deus (Exclamação, Maio de 2018) propõe-se enquanto «biografia paródica», falhando como biografia mas capitalizando enquanto paródia. Talvez fizesse por isso mais sentido falar de paródia biográfica de uma personagem de ficção, da qual resulta uma novela de contornos picarescos em tom de divertimento, repleta de aventuras improváveis e de situações bufonas. O tom de sátira não interessa tanto aqui como interessará o de aventura da imaginação, polvilhada de um sentido de humor tão capaz de pôr duas personagens a fazer sexo na lua como de sugerir tendências necrófilas e sessões de sexo anal em homenagem ao «mais sublime ladrão das letras universais» (p. 57): «Ah Genet do catano, o res-pei-tin-ho com… com… que te es-tou…» (p. 58)
Cabrita transforma João de Deus num libertino on the road, exagerando traços como é apanágio do caricaturista. Começa por dizer que o encontrou a tocar realejo e a recitar a Tabacaria numa rua de Lisboa, que daí partiu para uma entrevista de que resultaram 7 capítulos com João de Deus a falar na primeira pessoa. Artista que cita Steiner e Cesariny, frequenta salas de cinema, anda com os Diários Secretos de Wittgenstein debaixo do braço, declama Almeida Garrett, é expulso de uma sessão de ballet na Gulbenkian, convocado a identificar um morto do qual acaba por roubar um pentelho, mete-se num peep show e persegue uma prostituta… Isto nos idos de 1975, 1976, com ambientes que não serão estranhos a certa literatura portuguesa que fixou os retratos lisboetas desses dias. 
Sucede que António Cabrita desloca a personagem da Lisboa onde mais facilmente a reconhecemos, leva-a em fuga para a Suíça, onde terá as suas origens franco-húngaras, coloca-a em Madrid numa entrevista falhada com John Wayne, senta-o à mesa de sessões espíritas, mete-o à conversa com Victor Hugo, no encalço de Hugo Claus e Sylvia Kristel, a actriz de Emmanuelle (imagine-se para quê), passa por Amesterdão, e de filosofia é isto: «Eu enterro o verbo amar no vaso dos orégãos…» (p. 56) Ou isto: «Fodei sem temor, entregai-vos ao mal, que o bem só deve ser usado em medidas homeopáticas…» (p. 80) Ou ainda isto, mais à frente: «O que faço eu aqui? Ou porque estou aqui? Vai um burrié? Nada disso interessa: a vida é uma piada que não gosta das rugas que tem, não gosta de oxidar. E só por isso inventamos a memória» (p. 91).
Tânger, por causa de Paul Bowles, será a próxima paragem. E pelas arábias andará o alucinado João de Deus, metido em aventuras que não lembrariam ao Diabo. Lembraram a António Cabrita, que não tem peias na desbunda e se deixa perder por completo nos desvarios da imaginação. O que ele nunca perde, porque disso está seguro, é a mão de prosador, aqui com uma vertente humorística a fazer justiça à personagem, acompanhando o seu carácter imoral, o frenesim libertino, a libertinagem de um ser que a gente dificilmente imaginaria fora de Lisboa, mas Cabrita coloca nas arábias no papel de um Ali Babá que salva do harém seis raparigas cegas. Inesperado feito moralizante num tipo absolutamente amoral. Se em ficção tudo é permitido, então Cabrita levou-o à letra nesta novela. De umas boas gargalhadas aqui e acolá não se livrará por certo quem o leia

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