terça-feira, 23 de outubro de 2018

A PRÁTICA DA NATUREZA SELVAGEM


Microplásticos detectados nas fezes de indivíduos de oito países, é o título de uma notícia de hoje. Não é preciso ir mais longe, todos os dias somos confrontados com notícias destas que obrigam a repensar a relação do homem com a Natureza. Podíamos aludir, em contraponto, às teses de lunáticos governantes do mundo para quem o progresso se confunde com destruição do meio ambiente, ainda que neguem os efeitos nefastos da poluição na atmosfera, da destruição das florestas, da indústria desgovernada a favor do capital. Todos os dias ao balcão de uma loja há quem reclame pelo preço dos sacos de plástico, que não deviam ser pagos, que é tudo jogada para meter dinheiro ao bolso. Ora aí têm a primeira página do dia: microplásticos detectados nas fezes de indivíduos de oito países, o que significa, trocado por miúdos, que andamos a ingerir plástico. Não deve ser alimento que faça bem à saúde, como à saúde do planeta presumo também não faça bem a desflorestação recentemente denunciada, mais uma vez, por Ailton Krenak, líder da resistência indígena no Brasil. 
Em A Prática da Natureza Selvagem (Antígona, Julho de 2018), Gary Snyder (n. 1930) oferece-nos nove ensaios onde se prova ser possível pensar estas questões com serenidade e sem extremar posições. Resta saber a quem chegará a mensagem. Snyder é um activista da chamada Ecologia Profunda, movimento filosófico com vista à promoção da vida na Terra independentemente da sua utilidade imediata para os seres humanos. O problema da utilidade, aliás, é facilmente desmontável observando as práticas consumistas das sociedades desenvolvidas, que varrem para o lixo toneladas de alimentos sem valor comercial, promovem uma cultura do supérfluo e do desperdício, hipotecando ecossistemas e aniquilando diversas formas de vida. 
Poeta frequentemente associado à Beat Generation, o autor de Turtle Island trabalhou na floresta, viajou, contactou com vários povos pelo mundo inteiro, dedicou-se ao budismo, concebeu uma perspectiva acerca da natureza selvagem com raízes nos ensinamentos de Ralph Waldo Emerson (n. 1803 – m. 1882) e Henry David Thoreau (n. 1817 – m. 1862), desafiando-nos a viajar pelo interior do Eu em busca do que em nós permanece de selvagem e nos liga ao Todo de que somos parte integrante. Um dos aspectos mais curiosos da sua filosofia consiste na superação de uma perspectiva meramente contemplativa e ingénua da Natureza, a qual compreende tanto uma dimensão bela quão ameaçadora. «Para sermos verdadeiramente livres, temos de aceitar as condições fundamentais tal como são dolorosas, impermanentes, abertas, imperfeitas e de nos mostrarmos depois gratos pela impermanência e liberdade que elas nos concedem» (p. 13), afirma logo a abrir. 130 páginas depois apela a uma ecologia profunda que se debruce sobre o lado negro da natureza, acrescentando: «Os seres humanos sobrevalorizaram a pureza e repugna-lhes o sangue, a poluição, a putrefacção» (p. 148). 
Esta desmontagem de uma narrativa purificadora, que não tem em conta o lado nocturno e canibalesco da natureza selvagem, é uma das suas propostas mais enriquecedoras, já que apela a uma panorâmica alargada do nosso próprio papel no mundo natural. Neste sentido, a sua prática da natureza selvagem resulta num exercício de autoconhecimento, o Eu é o seu próprio objecto de estudo enquanto parte integrante de um Todo mais vasto, nada está fora de nada, tudo faz parte de tudo: «O meio selvagem não pode ser tornado sujeito ou objecto do mesmo modo; tem de ser abordado a parir de dentro, enquanto qualidade intrínseca àquilo que somos» (p. 237). Este deve ser o princípio da discussão, o ponto a partir do qual toda a questão ambiental deve ser discutida, pois não podemos continuar a olhar para a Natureza como estando apartados dela, como sendo exteriores a ela com a missão ancestral de a dominarmos e dela sorvermos tudo quanto seja proveitoso às nossas desmesuradas ambições materiais. 
Próximo de certas formas de panteísmo, a filosofia de Gary Snyder procura recuperar uma ideia aglutinadora do corpo e da alma, ambos considerados como inerentemente selvagens, inseparáveis: «Para resolver esta dicotomia do civilizado e do selvagem, primeiro temos de decidir ser inteiros» (p. 35). Ser inteiros significa aceitar a nossa própria natureza sem a tentação de separá-la dos outros seres, sem a tentação de nos colocar num patamar de superioridade que mais tarde ou mais cedo revelar-se-á não só incorrecto, como infrutífero, contraproducente e, no limite, suicida. A lista dos valores inupiaques, enunciados a páginas 78, com o Humor no topo, talvez fosse suficiente para uma urgentíssima mudança de mentalidades. 
Parte fundamental do nosso mundo está a desaparecer rapidamente, não sendo provável a sua recuperação. Este processo acelerado de extinção, impelido pela ganância, pela arrogância, obriga a uma perspectiva cultural que recupere ensinamentos antigos, primitivos, e deles retire o proveito de uma relação pacífica do homem com a sua natureza selvagem. «A natureza selvagem encontra-se inextricavelmente ligada à trama do eu e da cultura» (pp. 93-94). Se a nem todos convém o eremitismo viajante no espaço, a todos ele parece fazer falta interiormente. Em busca precisamente do misterioso elo que leva ao respeito pelo outro, seja ele uma montanha, um oceano, um urso, uma árvore ou uma simples pedra. 
Não deixa de ser paradoxal que a luta dos chamados “povos nativos” contra a avidez de multinacionais que exploram madeiras, petróleo ou outros recursos naturais, seja uma luta em nosso favor, mesmo que muitos de nós não o entendamos, cegos que ficámos com alucinadas visões de progresso e evolução. Benefícios e malefícios têm várias ordens de medida. A proposta é, pois, a de produzir com a natureza em vez de contra ela. O mal pode ser-nos natural, mas não tem de acabar com o bem:

Todos podemos concordar que há um problema com o egoísmo do eu humano. Será este um reflexo do meio selvagem e da natureza? Penso que não, pois a própria civilização consiste na destruição e institucionalização do ego sob a forma do Estado, tanto no Oriente como Ocidente. Não é o caos da natureza que nos ameaça, mas a presunção por parte do Estado de que foi ele que criou a ordem. Além disso, uma ignorância quase autocomplacente no que toca ao mundo natural permeia os círculos empresariais, políticos e religiosos euro-americanos. A natureza é ordenada. O que na natureza parece ser caótico é apenas um tipo de ordem mais complexa.

Gary Snyder, in A Prática da Natureza Selvagem, trad. José Miguel Silva, Antígona, Julho de 2018, p. 125.

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