Microplásticos detectados nas fezes de indivíduos de oito
países, é o título de uma notícia de hoje. Não é preciso ir mais longe, todos
os dias somos confrontados com notícias destas que obrigam a repensar a relação
do homem com a Natureza. Podíamos aludir, em contraponto, às teses de lunáticos
governantes do mundo para quem o progresso se confunde com destruição do meio
ambiente, ainda que neguem os efeitos nefastos da poluição na atmosfera, da
destruição das florestas, da indústria desgovernada a favor do capital. Todos os
dias ao balcão de uma loja há quem reclame pelo preço dos sacos de plástico,
que não deviam ser pagos, que é tudo jogada para meter dinheiro ao bolso.
Ora aí têm a primeira página do dia: microplásticos detectados nas fezes de
indivíduos de oito países, o que significa, trocado por miúdos, que andamos a
ingerir plástico. Não deve ser alimento que faça bem à saúde, como à saúde do
planeta presumo também não faça bem a desflorestação recentemente denunciada,
mais uma vez, por Ailton Krenak, líder da resistência indígena no Brasil.
Em A
Prática da Natureza Selvagem (Antígona, Julho de 2018), Gary Snyder (n. 1930)
oferece-nos nove ensaios onde se prova ser possível pensar estas questões com
serenidade e sem extremar posições. Resta saber a quem chegará a mensagem.
Snyder é um activista da chamada Ecologia Profunda, movimento filosófico com
vista à promoção da vida na Terra independentemente da sua utilidade imediata
para os seres humanos. O problema da utilidade, aliás, é facilmente desmontável
observando as práticas consumistas das sociedades desenvolvidas, que varrem
para o lixo toneladas de alimentos sem valor comercial, promovem uma cultura do
supérfluo e do desperdício, hipotecando ecossistemas e aniquilando diversas
formas de vida.
Poeta frequentemente associado à Beat Generation, o autor de
Turtle Island trabalhou na floresta, viajou, contactou com vários povos pelo
mundo inteiro, dedicou-se ao budismo, concebeu uma perspectiva acerca da
natureza selvagem com raízes nos ensinamentos de Ralph Waldo Emerson (n. 1803 –
m. 1882) e Henry David Thoreau (n. 1817 – m. 1862), desafiando-nos a viajar pelo interior do Eu em busca do que em nós permanece de selvagem e nos liga ao Todo
de que somos parte integrante. Um dos aspectos mais curiosos da sua filosofia consiste
na superação de uma perspectiva meramente contemplativa e ingénua da Natureza,
a qual compreende tanto uma dimensão bela quão ameaçadora. «Para sermos
verdadeiramente livres, temos de aceitar as condições fundamentais tal como são
—
dolorosas, impermanentes, abertas, imperfeitas — e de nos mostrarmos depois
gratos pela impermanência e liberdade que elas nos concedem» (p. 13), afirma
logo a abrir. 130 páginas depois apela a uma ecologia profunda que se debruce
sobre o lado negro da natureza, acrescentando: «Os seres humanos
sobrevalorizaram a pureza e repugna-lhes o sangue, a poluição, a putrefacção»
(p. 148).
Esta desmontagem de uma narrativa purificadora, que não tem em conta
o lado nocturno e canibalesco da natureza selvagem, é uma das suas propostas
mais enriquecedoras, já que apela a uma panorâmica alargada do nosso próprio
papel no mundo natural. Neste sentido, a sua prática da natureza selvagem
resulta num exercício de autoconhecimento, o Eu é o seu próprio objecto de
estudo enquanto parte integrante de um Todo mais vasto, nada está fora de nada,
tudo faz parte de tudo: «O meio selvagem não pode ser tornado sujeito ou
objecto do mesmo modo; tem de ser abordado a parir de dentro, enquanto
qualidade intrínseca àquilo que somos» (p. 237). Este deve ser o princípio da
discussão, o ponto a partir do qual toda a questão ambiental deve ser
discutida, pois não podemos continuar a olhar para a Natureza como estando
apartados dela, como sendo exteriores a ela com a missão ancestral de a dominarmos e dela
sorvermos tudo quanto seja proveitoso às nossas desmesuradas ambições materiais.
Próximo de certas formas de panteísmo, a filosofia de Gary Snyder
procura recuperar uma ideia aglutinadora do corpo e da alma, ambos considerados
como inerentemente selvagens, inseparáveis: «Para resolver esta dicotomia do
civilizado e do selvagem, primeiro temos de decidir ser inteiros» (p. 35). Ser
inteiros significa aceitar a nossa própria natureza sem a tentação de separá-la dos
outros seres, sem a tentação de nos colocar num patamar de superioridade que
mais tarde ou mais cedo revelar-se-á não só incorrecto, como infrutífero,
contraproducente e, no limite, suicida. A lista dos valores inupiaques,
enunciados a páginas 78, com o Humor no topo, talvez fosse suficiente para uma
urgentíssima mudança de mentalidades.
Parte fundamental do nosso mundo está a
desaparecer rapidamente, não sendo provável a sua recuperação. Este processo
acelerado de extinção, impelido pela ganância, pela arrogância, obriga a uma
perspectiva cultural que recupere ensinamentos antigos, primitivos, e deles
retire o proveito de uma relação pacífica do homem com a sua natureza selvagem.
«A natureza selvagem encontra-se inextricavelmente ligada à trama do eu e da
cultura» (pp. 93-94). Se a nem todos convém o eremitismo viajante no espaço, a
todos ele parece fazer falta interiormente. Em busca precisamente do misterioso
elo que leva ao respeito pelo outro, seja ele uma montanha, um oceano, um urso,
uma árvore ou uma simples pedra.
Não deixa de ser paradoxal que a luta dos
chamados “povos nativos” contra a avidez de multinacionais que exploram
madeiras, petróleo ou outros recursos naturais, seja uma luta em nosso favor,
mesmo que muitos de nós não o entendamos, cegos que ficámos com alucinadas
visões de progresso e evolução. Benefícios e malefícios têm várias ordens de medida. A proposta é, pois, a de produzir com a
natureza em vez de contra ela. O mal pode ser-nos natural, mas não tem de acabar
com o bem:
Todos podemos concordar que há um problema com o egoísmo
do eu humano. Será este um reflexo do meio selvagem e da natureza? Penso que
não, pois a própria civilização consiste na destruição e institucionalização do
ego sob a forma do Estado, tanto no Oriente como Ocidente. Não é o caos da
natureza que nos ameaça, mas a presunção por parte do Estado de que foi ele que
criou a ordem. Além disso, uma ignorância quase autocomplacente no que toca ao
mundo natural permeia os círculos empresariais, políticos e religiosos
euro-americanos. A natureza é ordenada. O que na natureza parece ser caótico é
apenas um tipo de ordem mais complexa.
Gary Snyder, in A Prática da Natureza Selvagem, trad.
José Miguel Silva, Antígona, Julho de 2018, p. 125.
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