domingo, 7 de outubro de 2018

TETRALOGIA DA ASSOMBRAÇÃO



   A palavra assombração sugere-nos, desde logo, um território fantasmagórico, povoado por entidades sobrenaturais e imaginárias. É terreno onde os mitos fertilizam, causando estranheza e deslumbramento, provocando espanto, obrigando a um esforço de decifração que mais não é do que tentativa, tantas vezes gorada, de trazer à luz a realidade própria das sombras. Assombrar pode também assumir esse significado porventura mais literal de tornar sombrio. Nesse caso é verbo, e enquanto tal consiste em obscurecer. Do obscuro nasce o fascínio, já que obscuro é tudo quanto carece de explicação. E nada mais fascina do que aquilo que carece de explicação.
   A poesia de Jaime Rocha (n. 1949) inscreve-se neste território contra tudo quanto é habitual encontrarmos na poesia portuguesa (não só contemporânea), nomeadamente se tivermos em conta os quatro livros que compõem a tetralogia denominada da assombração: Os Que Vão Morrer (Relógio D’Água, Junho de 2000), Zona de Caça (Relógio D’Água, Setembro de 2002), Lacrimatória (Relógio D’Água, Novembro de 2005), Necrophilia (Relógio D’ Água, Março de 2010). São poemas-sequência, compostos geralmente por 50 fragmentos, onde vamos reencontrando diversas personagens e entidades em torno da relação central de um homem com uma mulher: «O homem quase perdeu / o medo, porque o que ele fazia era explicar-lhe / as diversas formas de morrer antes do amor» (Os Que Vão Morrer, p. 17)
   Mais ajuizado seria, porventura, aconselhar a excelente leitura para esta tetralogia proposta por João Barrento no prefácio a Necrophilia, ou sugerir a leitura do ensaio de Joaquim Manuel Magalhães que serviu de prefácio à reedição do livro Do Extermínio (Relógio D’ Água, Novembro de 2003; 1.ª edição, Black Sun Editores, 1995). Nada do que aqui possa dizer-se irá acrescentar o que quer que seja ao que nesses prefácios foi dito, ainda que as pistas de leitura para uma obra ao mesmo tempo tão complexa e fascinante sejam inesgotáveis. Há algo, porém, que liga estes livros e deve ser reforçado enquanto exercício de compreensão das formas possíveis de construção de um poema.
   Jaime Rocha inicia a tetralogia com um conjunto de poemas a que deu o título de visões. Neste sentido, ele legitima a perspectiva demiúrgica do poeta. A visão, neste contexto, não tem um significado meramente técnico, ela remete para o campo das alucinações, das revelações xamânicas, ou seja, remete para um campo extra-sensorial, onírico, profético. A visão pode ser sonho, o que aproximaria esta poesia da aventura surrealista. Sucede que na torrente de imagens justapostas, aglutinadas em cada um dos fragmentos destes livros, essa dimensão surrealista é superada por uma disposição formal que pouco tem que ver com automatismos, tornando-se muito mais provável a sua ligação a uma imagética proveniente de leituras clássicas, fundadoras, originárias, como seja a mitologia de onde o poeta resgata Ártemis e Aqueronte para Zona de Caça, ou Pentesileia e Perséfone para Lacrimatória. Noutras ocasiões, as imagens surgem de dentro de pinturas (ver poema 17 de Zona de Caça), sugerindo uma relação do poema com a pintura que a breve trecho ficará esclarecida.
   Estas visões/assombrações partem da apropriação de figuras fundadoras de um imaginário que o poeta penetra e procura entender, mormente no que possam ter de embrionário esforço de explicação do "grande tema" aqui retratado: o da relação entre o amor e a morte, o da relação entre as forças criadoras e a tendência para a destruição de tudo quanto vive, Eros e Thanatos. Nunca devemos perder de vista os últimos versos do Poema inicial, em Os Que Vão Morrer: «dois homens / matam-se num anfiteatro / e dos seus gritos nascem / as visões do mundo» (p. 8). Da violência do gesto surgem as visões, o mundo que surge é já não apenas o mundo real de coisas vivas tendendo para a morte, mas de coisas ao mesmo tempo vivas e mortas, porque vivem na morte como fantasmas, almas perdidas, espíritos vagueantes.
   Como na Ofélia de John Everett Millais, a modelo que representa a morta não está morta: «Lizzie anda pela humidade com as / veias expostas ao calor» (Lacrimatória, p. 60). A violência a que foi sujeita, passando horas dentro de uma banheira, provocar-lhe-á uma doença que o quadro não revela, pois a natureza dos detalhes favorece apenas a representação de uma cena literária. Desta aproximação ao universo pré-rafaelita colhe a poesia de Jaime Rocha a riqueza de um onirismo medievalista, com figuras típicas tais os cavaleiros arturianos de Edward Burne-Jones, figuras pálidas, andróginas, como o anjo, ou uma paisagem fortemente enraizada no mundo natural que nos permite observar «criaturas / cobertas de musgo» (Os Que Vão Morrer, p. 24), bandos de corvos, cavalos florescendo no meio de árvores, colmeias, javalis, «cães de caça» (Zona de Caça, p. 22), sacrifícios de cordeiros, ilhas, falésias, garças, «pássaros cegos» (Lacrimatória, p. 32), abutres engolindo outros abutres, urtigas, campos de juncos, peixes…
   «Mas o homem ouve uma outra voz, uma voz / que vem da terra como um hino. O céu / abre-se como se uma enxurrada o tivesse / cortado em dois. E todas as outras figuras / do poema saltam desse espaço e se juntam / de novo para cantá-lo, o pedreiro, o cavaleiro, / o guerreiro, o homem da montanha» (Necrophilia, p. 39). E é como se ao longo dos quatro livros todas estas figuras cumprissem um ritual iniciático, talvez de iniciação à morte, talvez de iniciação ao silêncio, ao qual corresponde a sua própria desmaterialização. Tanto a mulher como o homem em torno dos quais a acção se desenrola, numa catadupa de imagens e cortes e cruzamentos difíceis de acompanhar, surgem frequentemente num estado de descorporalização que é talvez a sua principal característica. São fantasmas, daí que provoquem assombrações. Neles, o corpo já não é a prisão que os afasta da verdade. Porque neles o corpo já não é, a sua verdade é uma verdade obscura, sombria, é pura assombração.
   Não será despropositado falar de discurso alegórico a propósito destes poemas. Mas alegoria de quê? Do amor? Da morte? Dos ciclos que confinam a existência? Do real? Repare-se como os quatro títulos nos colocam em relação directa com o problema da morte, sendo o último aquele onde a morte mais se aproxima de uma ideia de amor. Com a Tetralogia da Assombração, Jaime Rocha ofereceu-nos uma paisagem complexa que possibilita a especulação acerca da própria germinação do poema. Deste modo, esta poderá ser uma alegoria da criação. Trata-se de exemplo raro. Raras vezes os poetas portugueses arriscam uma cosmologia própria, singular, preferindo concentrar o discurso na observação do real, na expressão do sentimento, ou na fulguração da linguagem. Nada disso vamos encontrar nestes livros desprovidos de eu, distantes tanto do lirismo como de ornamentações vocabulares, mas cúmplices de um sentido da criação enraizado em fontes que apesar de serem identificáveis não esgotam a singularidade do poema.

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