A palavra assombração sugere-nos, desde logo, um
território fantasmagórico, povoado por entidades sobrenaturais e imaginárias. É terreno onde os mitos fertilizam, causando estranheza e deslumbramento,
provocando espanto, obrigando a um esforço de decifração que mais não é do que tentativa,
tantas vezes gorada, de trazer à luz a realidade própria das sombras. Assombrar
pode também assumir esse significado porventura mais literal de tornar sombrio.
Nesse caso é verbo, e enquanto tal consiste em obscurecer. Do obscuro nasce o
fascínio, já que obscuro é tudo quanto carece de explicação. E nada mais
fascina do que aquilo que carece de explicação.
A poesia de Jaime Rocha (n. 1949) inscreve-se neste
território contra tudo quanto é habitual encontrarmos na poesia portuguesa (não
só contemporânea), nomeadamente se tivermos em conta os quatro livros que compõem
a tetralogia denominada da assombração: Os Que Vão Morrer (Relógio D’Água,
Junho de 2000), Zona de Caça (Relógio D’Água, Setembro de 2002), Lacrimatória (Relógio
D’Água, Novembro de 2005), Necrophilia (Relógio D’ Água, Março de 2010). São
poemas-sequência, compostos geralmente por 50 fragmentos, onde vamos
reencontrando diversas personagens e entidades em torno da relação central de
um homem com uma mulher: «O homem quase perdeu / o medo, porque o que ele fazia era explicar-lhe / as diversas formas de morrer antes do amor» (Os Que Vão Morrer, p. 17)
Mais ajuizado seria, porventura, aconselhar a excelente
leitura para esta tetralogia proposta por João Barrento no prefácio a
Necrophilia, ou sugerir a leitura do ensaio de Joaquim Manuel Magalhães que
serviu de prefácio à reedição do livro Do Extermínio (Relógio D’ Água, Novembro
de 2003; 1.ª edição, Black Sun Editores, 1995). Nada do que aqui possa dizer-se
irá acrescentar o que quer que seja ao que nesses prefácios foi dito, ainda que
as pistas de leitura para uma obra ao mesmo tempo tão complexa e fascinante
sejam inesgotáveis. Há algo, porém, que liga estes livros e deve ser reforçado
enquanto exercício de compreensão das formas possíveis de construção de um
poema.
Jaime Rocha inicia a tetralogia com um conjunto de poemas
a que deu o título de visões. Neste sentido, ele legitima a perspectiva demiúrgica
do poeta. A visão, neste contexto, não tem um significado meramente técnico,
ela remete para o campo das alucinações, das revelações xamânicas, ou seja,
remete para um campo extra-sensorial, onírico, profético. A visão pode ser sonho,
o que aproximaria esta poesia da aventura surrealista. Sucede que na torrente
de imagens justapostas, aglutinadas em cada um dos fragmentos destes livros, essa
dimensão surrealista é superada por uma disposição formal que pouco tem que ver
com automatismos, tornando-se muito mais provável a sua ligação a uma imagética
proveniente de leituras clássicas, fundadoras, originárias, como seja a
mitologia de onde o poeta resgata Ártemis e Aqueronte para Zona de Caça, ou
Pentesileia e Perséfone para Lacrimatória. Noutras ocasiões, as imagens surgem de dentro de pinturas (ver poema 17 de Zona de Caça), sugerindo uma relação do poema com a pintura que a breve trecho ficará esclarecida.
Estas visões/assombrações partem da apropriação de
figuras fundadoras de um imaginário que o poeta penetra e procura entender,
mormente no que possam ter de embrionário esforço de explicação do "grande tema" aqui retratado: o da relação entre o amor e a morte, o da relação entre as
forças criadoras e a tendência para a destruição de tudo quanto vive, Eros e Thanatos. Nunca
devemos perder de vista os últimos versos do Poema inicial, em Os Que Vão
Morrer: «dois homens / matam-se num anfiteatro / e dos seus gritos nascem / as
visões do mundo» (p. 8). Da violência do gesto surgem as visões, o mundo que
surge é já não apenas o mundo real de coisas vivas tendendo para a morte, mas
de coisas ao mesmo tempo vivas e mortas, porque vivem na morte como fantasmas, almas perdidas, espíritos vagueantes.
Como na Ofélia de John Everett Millais, a modelo que
representa a morta não está morta: «Lizzie anda pela humidade com as / veias expostas ao calor» (Lacrimatória, p. 60). A violência a que foi sujeita, passando
horas dentro de uma banheira, provocar-lhe-á uma doença que o quadro não
revela, pois a natureza dos detalhes favorece apenas a representação de uma
cena literária. Desta aproximação ao universo pré-rafaelita colhe a poesia de
Jaime Rocha a riqueza de um onirismo medievalista, com figuras típicas tais os
cavaleiros arturianos de Edward Burne-Jones, figuras pálidas, andróginas, como
o anjo, ou uma paisagem fortemente enraizada no mundo natural que nos permite
observar «criaturas / cobertas de musgo» (Os Que Vão Morrer, p. 24), bandos de
corvos, cavalos florescendo no meio de árvores, colmeias, javalis, «cães de
caça» (Zona de Caça, p. 22), sacrifícios de cordeiros, ilhas, falésias, garças,
«pássaros cegos» (Lacrimatória, p. 32), abutres engolindo outros abutres,
urtigas, campos de juncos, peixes…
«Mas o homem ouve uma outra voz, uma voz / que vem da
terra como um hino. O céu / abre-se como se uma enxurrada o tivesse / cortado
em dois. E todas as outras figuras / do poema saltam desse espaço e se juntam /
de novo para cantá-lo, o pedreiro, o cavaleiro, / o guerreiro, o homem da
montanha» (Necrophilia, p. 39). E é como se ao longo dos quatro livros todas
estas figuras cumprissem um ritual iniciático, talvez de iniciação à morte,
talvez de iniciação ao silêncio, ao qual corresponde a sua própria desmaterialização.
Tanto a mulher como o homem em torno dos quais a acção se desenrola, numa
catadupa de imagens e cortes e cruzamentos difíceis de acompanhar, surgem frequentemente
num estado de descorporalização que é talvez a sua principal característica. São fantasmas, daí que provoquem assombrações. Neles, o corpo já não é a prisão que os afasta da verdade. Porque neles o corpo
já não é, a sua verdade é uma verdade obscura, sombria, é pura assombração.
Não será despropositado falar de discurso alegórico a
propósito destes poemas. Mas alegoria de quê? Do amor? Da morte? Dos ciclos que
confinam a existência? Do real? Repare-se como os quatro títulos nos colocam em
relação directa com o problema da morte, sendo o último aquele onde a morte
mais se aproxima de uma ideia de amor. Com a Tetralogia da Assombração, Jaime
Rocha ofereceu-nos uma paisagem complexa que possibilita a especulação acerca
da própria germinação do poema. Deste modo, esta poderá ser uma alegoria da
criação. Trata-se de exemplo raro. Raras vezes os poetas portugueses
arriscam uma cosmologia própria, singular, preferindo concentrar o discurso na
observação do real, na expressão do sentimento, ou na fulguração da linguagem.
Nada disso vamos encontrar nestes livros desprovidos de eu, distantes tanto do
lirismo como de ornamentações vocabulares, mas cúmplices de um sentido da
criação enraizado em fontes que apesar de serem identificáveis não esgotam a
singularidade do poema.
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