No dia 13 de Outubro de 1968, Portugal perdeu abruptamente
um dos seus melhores e mais promissores poetas. Francisco António Lhmeyer
Flores Bugalho, nascido a 7 de Outubro de 1933, atirou-se para debaixo de um
comboio legando à posteridade um único livro, simplesmente intitulado 35 Poemas
(1959), que assinou com o pseudónimo Cristovam Pavia. Cinquenta anos passados
sobre tão trágico desaparecimento, José Carlos Costa Marques (n. 1945) lembra o
poeta e homenageia-o em Uma Voz Entre Vozes (Edições Afrontamento, Maio de
2018). Dos também 35 poemas coligidos agora neste volume, António Cândido
Franco sublinha em prefácio a presença da morte e da infância, mas também da
natureza não humana. Por diversas razões que não têm apenas que ver com a
homenagem assumida, o tema da morte é sem dúvida aquele que mais se evidencia
ao longo do livro. No entanto, essa evidência surge invariavelmente acompanhada da
valorização de um enigma acerca da vida que logo na primeira estrofe coloca
lado a lado «o nada de onde viemos» e «o nada onde entraremos», o «clarão» e a
«escuridão», a «luz» e a «sombra», o «verão» e o «outono». Assim sendo, mais do
que a presença da morte nestes poemas parece-me justo sublinhar neles a
presença da vida.
As muitas dedicatórias reforçam
esse vínculo à experiência vivida enquanto raiz a partir da qual o poema progride, preferencialmente por direcções contrastantes que de um modo muito simples destacam os paradoxos
da existência: «Levaram-nos os sapatos aonde eles quiseram / Na luz e no azul
buscando sinais // A beleza do mundo A estranheza do mundo» (p. 18). O uso de
maiúsculas para pontuar os versos, expurgados de sinais gráficos, gera efeitos rítmicos
que apelam a leituras pausadas, descobrindo-se entre pausas uma respiração
muito própria que faz com que os poemas se liguem uns aos outros apesar do
hiato temporal que os separa. O mais antigo data de 2010, o mais recente é de
2013. Por vezes, os poemas ligam-se também pela repetição de vocábulos e de
imagens sugestivas, tais como a da tristeza que cai tal o pano no termo de uma
peça. O fim a que se alude compreende o drama de uma vida feita de
lutas e de cansaços na busca de repouso. Colocado em cena isoladamente, o
actor sabe que não está só. Sentir a perda do outro faz disso prova. Da
constatação desta alteridade surgem as antíteses que expressam a verdadeira
essência do mundo e da vida: «O mundo só no meio das trevas luminoso», «E a
alegria suavemente nascendo da tristeza» (p. 20). Ou ainda «A terra onde os
vivos e os mortos um só corpo são» (p. 22).
Outro atributo deste livro é a inclusão singela, em
alguns poemas, de factos sociais, aproximando-se aí o discurso de um tom que
tenderíamos a declarar mais interventivo, porventura menos interessante do que
quando remetem para campos de reflexão onde o ar livre da serra contrasta com a
vida na cidade. Como que denunciada pelo enaltecimento de uma pureza apenas
vislumbrável no mundo natural, esta dimensão telúrica que encontramos mais
intensamente nos poemas 8, 10, 32, coloca-nos também face às perplexidades do
mundo moderno, nomeadamente consciencializando quão parca se mantém a nossa
condição a despeito de um progresso científico que não só não nos libertou do
mal como acabou, a espaços, por provocá-lo em escalas inimagináveis. Daí que se
recordem as vítimas de Chernobil e Fukuxima com intuitos menos sentimentais do
que reflexivos, pois o que importa salvaguardar nesses poemas é a memória de um
facto que projecta os mecanismos contraditórios do progresso e, como disse, a débil
condição dos homens no seio de uma Natureza que os transcende.
«Morte e vida confundidas» (p. 34), a infância surge,
então, a partir de lembranças provocadas por sensações inusitadas, como quando
do cheiro de um pano de cozinha a arder a memória envia o sujeito poético a uma
cena do passado, ou a observação de edifícios antigos na cidade leva a
recordações desse «outrora de onde viemos» (p. 33). O que parece estar aqui em
causa não é a sublimação de um hipotético paraíso perdido, mas antes a noção da
vida enquanto «espera». Podemos dizer que esta espera acusa na caminhada
exercida entre vida e morte «a única ciência» legitimada pela experiência: «Um
dia morreremos / Um dia a cada dia um dia mais próximo / E a cada dia o espanto
é o mesmo de viver / É o mesmo espanto da morte um dia mais próxima» (p. 56). A
clareza da linguagem utilizada convém ao que o poema trespassa do pensamento,
sendo de todos os tempos os temas contemplados por esta poesia. Essa clareza
torna o poema cativante, por libertá-lo de ornamentos supérfluos concentrando
em breves mas certeiras palavras «uma voz entre vozes».
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