domingo, 28 de outubro de 2018

UMA VOZ ENTRE VOZES


No dia 13 de Outubro de 1968, Portugal perdeu abruptamente um dos seus melhores e mais promissores poetas. Francisco António Lhmeyer Flores Bugalho, nascido a 7 de Outubro de 1933, atirou-se para debaixo de um comboio legando à posteridade um único livro, simplesmente intitulado 35 Poemas (1959), que assinou com o pseudónimo Cristovam Pavia. Cinquenta anos passados sobre tão trágico desaparecimento, José Carlos Costa Marques (n. 1945) lembra o poeta e homenageia-o em Uma Voz Entre Vozes (Edições Afrontamento, Maio de 2018). Dos também 35 poemas coligidos agora neste volume, António Cândido Franco sublinha em prefácio a presença da morte e da infância, mas também da natureza não humana. Por diversas razões que não têm apenas que ver com a homenagem assumida, o tema da morte é sem dúvida aquele que mais se evidencia ao longo do livro. No entanto, essa evidência surge invariavelmente acompanhada da valorização de um enigma acerca da vida que logo na primeira estrofe coloca lado a lado «o nada de onde viemos» e «o nada onde entraremos», o «clarão» e a «escuridão», a «luz» e a «sombra», o «verão» e o «outono». Assim sendo, mais do que a presença da morte nestes poemas parece-me justo sublinhar neles a presença da vida.
As muitas dedicatórias reforçam esse vínculo à experiência vivida enquanto raiz a partir da qual o poema progride, preferencialmente por direcções contrastantes que de um modo muito simples destacam os paradoxos da existência: «Levaram-nos os sapatos aonde eles quiseram / Na luz e no azul buscando sinais // A beleza do mundo A estranheza do mundo» (p. 18). O uso de maiúsculas para pontuar os versos, expurgados de sinais gráficos, gera efeitos rítmicos que apelam a leituras pausadas, descobrindo-se entre pausas uma respiração muito própria que faz com que os poemas se liguem uns aos outros apesar do hiato temporal que os separa. O mais antigo data de 2010, o mais recente é de 2013. Por vezes, os poemas ligam-se também pela repetição de vocábulos e de imagens sugestivas, tais como a da tristeza que cai tal o pano no termo de uma peça. O fim a que se alude compreende o drama de uma vida feita de lutas e de cansaços na busca de repouso. Colocado em cena isoladamente, o actor sabe que não está só. Sentir a perda do outro faz disso prova. Da constatação desta alteridade surgem as antíteses que expressam a verdadeira essência do mundo e da vida: «O mundo só no meio das trevas luminoso», «E a alegria suavemente nascendo da tristeza» (p. 20). Ou ainda «A terra onde os vivos e os mortos um só corpo são» (p. 22).
Outro atributo deste livro é a inclusão singela, em alguns poemas, de factos sociais, aproximando-se aí o discurso de um tom que tenderíamos a declarar mais interventivo, porventura menos interessante do que quando remetem para campos de reflexão onde o ar livre da serra contrasta com a vida na cidade. Como que denunciada pelo enaltecimento de uma pureza apenas vislumbrável no mundo natural, esta dimensão telúrica que encontramos mais intensamente nos poemas 8, 10, 32, coloca-nos também face às perplexidades do mundo moderno, nomeadamente consciencializando quão parca se mantém a nossa condição a despeito de um progresso científico que não só não nos libertou do mal como acabou, a espaços, por provocá-lo em escalas inimagináveis. Daí que se recordem as vítimas de Chernobil e Fukuxima com intuitos menos sentimentais do que reflexivos, pois o que importa salvaguardar nesses poemas é a memória de um facto que projecta os mecanismos contraditórios do progresso e, como disse, a débil condição dos homens no seio de uma Natureza que os transcende.
«Morte e vida confundidas» (p. 34), a infância surge, então, a partir de lembranças provocadas por sensações inusitadas, como quando do cheiro de um pano de cozinha a arder a memória envia o sujeito poético a uma cena do passado, ou a observação de edifícios antigos na cidade leva a recordações desse «outrora de onde viemos» (p. 33). O que parece estar aqui em causa não é a sublimação de um hipotético paraíso perdido, mas antes a noção da vida enquanto «espera». Podemos dizer que esta espera acusa na caminhada exercida entre vida e morte «a única ciência» legitimada pela experiência: «Um dia morreremos / Um dia a cada dia um dia mais próximo / E a cada dia o espanto é o mesmo de viver / É o mesmo espanto da morte um dia mais próxima» (p. 56). A clareza da linguagem utilizada convém ao que o poema trespassa do pensamento, sendo de todos os tempos os temas contemplados por esta poesia. Essa clareza torna o poema cativante, por libertá-lo de ornamentos supérfluos concentrando em breves mas certeiras palavras «uma voz entre vozes».

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