sexta-feira, 16 de novembro de 2018

A ESTRADA



Cormac McCarthy (n. 1933) dedicou A Estrada (Relógio D’Água, Março de 2007) ao filho mais novo John Francis McCarthy, nascido em 1999, de uma relação do escritor com uma mulher 32 anos mais nova. Cormac e Jennifer divorciaram-se em 2006, ano da publicação do livro The Road (2006). É conhecida a predilecção do escritor norte-americano por ambientes decadentes, personagens marginais e desamparadas, vagabundos, vadios. A Estrada explora esses ambientes ao limite, colocando-nos num tempo indefinido, apocalíptico, num planeta Terra devastado onde pouco resta de vida. Paisagem estéril, trevas, estradas cobertas de cinza, negrume, árvores mortas: «Pó e cinzas por todo o lado» (p. 11). A alusão bíblica não é inocente. É neste cenário que pai e filho procuram sobreviver, errando por ruas ameaçadoras, fugindo do que sobra de gente, animais imorais capazes de comer outros seres humanos para matarem a fome. Uma história de sobrevivência, portanto, onde a morte e a vida andam lado a lado numa tensão permanente e aguda, levando as personagens a desejar não sentir — «Se ao menos o meu coração fosse de pedra» (p. 14) —, fugindo tanto da realidade como dos sonhos, evitando memórias, sobretudo memórias de tempos paradisíacos extintos e irrecuperáveis. «Esquecemo-nos do que queríamos recordar e recordamos o que queríamos esquecer» (p. 15), é este o perigo do jogo quando nos fazemos à estrada da memória. Neste sentido, a situação de sobrevivência em que as duas personagens se encontram estabelece uma relação paradoxal com o tempo, com o esquecimento e com a memória. O pai procura esquecer o que viveu, o filho procura memórias do que jamais viverá. «Solitários e acossados» (p. 16), caminham lado a lado completando-se e ajustando-se na caminhada errática que os levará a nenhures. Valerá a pena continuarem a lutar num mundo reduzido a trevas e cinzas? Valerá a pena manterem-se vivos num mundo onde estão impedidos de sonhar? A determinação do pai é a de um Cristo que carrega a cruz onde será crucificado. A Estrada é, para todos os efeitos, uma Via Crucis com as suas estações próprias: a visita à casa da infância, transformada em ruínas, o cruzamento com desconhecidos, um menino desprotegido, velhos andrajosos, o bunker abandonado como Simão de Cirene acudindo Jesus, o assassinato de um criminoso em legítima defesa, o episódio do roubo e subsequente vingança, estações envoltas numa imoralidade que projecta o leitor para dimensões onde a dúvida é a única certeza: «Em que é que o que nunca existirá difere do que nunca existiu?» (p. 27) Deus, o pai, essa palavra de morte que deixou à deriva, num filme de terror, o que resta da humanidade, o que restará, o filho. Eles carregam o fogo, são bons. «Deus não existe e nós somos os seus profetas» (p. 113), diz o pai. Mas é como se fosse Deus a falar. E é como se fosse Deus a morrer. Poças de vísceras, o nada como horizonte, episódios de canibalismo, mães devorando os próprios filhos, «Gente que fez do mundo uma mentira da primeira à última linha» (p. 55), desespero, cheiros hediondos, sempre o cheiros, preenchendo a atmosfera poluída por uma agonia cuja causa desconhecemos. Sabemos apenas da exaustão, do medo, do frio, da doença, da fome que contamina a paisagem fazendo-nos desconfiar da presença do bem no mundo. Mergulho profundo na memória ou via-sacra, A Estrada leva-nos a um precipício onde a entrega de um pai ao filho nada tem de modelar. Observemo-lo nos curtos diálogos que mantêm: «Achas que ainda é capaz de haver pássaros nalgum lugar? Não sei. Mas o que é que tu achas? Acho que é pouco provável» (p. 105). Pássaros, os mensageiros do Senhor, desaparecidos dos céus. Entre a dúvida e a desesperança, o pragmatismo do pai inscreve-se no domínio da necessidade. A situação obriga-o a uma pedagogia de recurso, quer garantir que o filho saberá suicidar-se quando chegar a hora. O problema está em reconhecer a hora, porque os relógios pararam, o tempo parou, sem tempo a vida dos homens perde o sentido, a morte mantém-se certa, o bem de se estar vivo não se compadece com «cidades saqueadas e exangues». Por que quer, então, manter-se vivo aquele que desespera? O que o leva a lutar até ao limite das suas forças? Por que carregou Jesus a cruz até ao fim? Haverá alguma redenção no gesto final? «Quando sonhares com um mundo que nunca existiu ou com um mundo que nunca existirá e te sentires outra vez feliz, então é porque já desististe. Percebes? E tu não podes desistir. Eu não te deixo desistir» (p. 126). Assim falou o pai ao filho enquanto este carregava a cruz. Dadas as circunstâncias, parece não haver declaração mais distópica do que a inicial. Porém, o remate é altamente utópico. Só a utopia pode levar a que alguém não desista entre «as cinzas amargas do mudo» (p. 145). Permanecendo à espera, à espera de um nada que liberte da mentira todos os amanheceres.

1 comentário:

Anónimo disse...

“Em que é que o que nunca existirá difere do que nunca existiu?” - difere em potencialidade.